Descrição de chapéu The New York Times

Mulheres estão na linha de frente dos protestos contra o golpe de Estado em Mianmar

Alvos da repressão policial, elas têm apoiado movimentos de desobediência civil e desafiado estereótipos de gênero

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Hannah Beech
The New York Times

Ma Kyal Sin gostava de taekwondo, comida condimentada e um bom batom vermelho. Ela adotou o nome inglês Angel. Seu pai se despediu dela com um abraço quando ela saiu às ruas de Mandalay, na região central de Mianmar, para se juntar às multidões que protestavam pacificamente contra a recente tomada do poder pelos militares.

A camiseta preta que Kyal Sin usou no protesto na quarta-feira (3) trazia estampada uma mensagem simples: “Vai dar tudo certo”.

Naquela tarde, Kyal Sin, 18, levou um tiro na cabeça disparado pelas forças de segurança, que mataram pelo menos 38 pessoas em todo o país nesse dia, o mais sangrento desde o golpe militar de 1º de fevereiro, segundo as Nações Unidas.

“Ela é uma heroína de nosso país”, disse Ma Cho Nwe Oo, uma das melhores amigas de Kyal Sin. Também ela vem participando dos protestos diários que eletrizam centenas de cidades em todo o país. “Ao participar desta revolução, nossa geração de mulheres jovens mostra que não somos menos corajosas que os homens.”

Mulheres protestam contra o golpe militar em Rangoon, em Mianmar
Mulheres protestam contra o golpe militar em Rangoon, em Mianmar - 6.fev.21/The New York Times - NYT

Desafiando os riscos, mulheres têm se posicionado na linha de frente do movimento de protestos de Mianmar, assinalando uma rejeição forte dos generais que depuseram uma líder civil mulher e reimpuseram uma ordem patriarcal que há meio século suprime as mulheres.

Elas vêm se reunindo às centenas de milhares em marchas diárias de protesto, representando sindicatos de professores, trabalhadoras do setor têxtil e do setor médico —todas categorias em que as mulheres formam a maioria. As mais jovens muitas vezes estão na linha de frente, onde as forças de segurança parecem tê-las escolhido como alvos. Duas mulheres jovens levaram tiros na cabeça na quarta-feira e outra recebeu uma bala perto do coração. As três morreram.

No início da semana, redes de TV dos militares anunciaram que as forças de segurança receberam ordens de não usar munição real e que, para sua defesa própria, vão atirar apenas na parte inferior do corpo das pessoas.

“Podemos perder algumas heroínas nesta revolução”, disse Ma Sandar, secretária-geral assistente da Confederação de Sindicatos de Trabalhadores de Mianmar, que participa dos protestos. “O sangue de nossas mulheres é vermelho.”

A violência na quarta-feira, que elevou o total de mortos desde o golpe para pelo menos 54, refletiu a brutalidade de uma força armada acostumada a abater os cidadãos mais inocentes. Pelo menos três crianças foram mortas no último mês. A primeira vítima fatal da repressão militar após o golpe foi uma mulher de 20 anos baleada na cabeça em 9 de fevereiro.

As mortes de manifestantes chocam e enfurecem defensores dos direitos humanos em todo o mundo.

“Os militares de Mianmar precisam parar de assassinar e prender manifestantes”, disse na quinta-feira (4) a alta comissária das Nações Unidas para os direitos humanos, Michelle Bachelet. “É totalmente abominável que as forças de segurança disparem munições reais contra manifestantes pacíficos em todo o país.”

Nas semanas passadas desde que os protestos começaram, grupos de voluntárias médicas têm percorrido as ruas prestando assistência aos feridos. Mulheres estão fortalecendo um movimento de desobediência civil que está paralisando o funcionamento do Estado. E estão desafiando os estereótipos de gênero vigentes em um país onde a tradição reza que as roupas que cobrem a parte inferior do corpo de homens e mulheres não devem ser lavadas juntas, para que o espírito feminino não contamine as roupas dos homens.

Com criatividade desafiadora, pessoas têm amarrado varais de sarongues, conhecidos como “htamein”, para proteger as zonas de protestos, sabendo que alguns homens relutam em passar por baixo deles. Outras afixaram imagens do general Min Aung Hlaing, o comandante do Exército que arquitetou o golpe, a htamein pendurados no varal, numa afronta à virilidade do general.

Mulheres fazem varais sob os quais os homens relutam em passar devido à superstição durante protesto em Rangoon, em Mianmar - 3.mar.21/AFP

“Mulheres jovens estão liderando os protestos porque temos natureza maternal e não queremos deixar que a próxima geração seja destruída”, explicou a médica Yin Yin Hnoung, 28, que se esquivou de balas em Mandalay. “Não estamos preocupadas com nossa própria sobrevivência. O que nos preocupa são as gerações futuras.”

Enquanto a desumanidade dos militares se estende a muitos dos 55 milhões de mianmarenses, são as mulheres que têm mais a perder com a retomada do poder total pelos generais, depois de cinco anos nos quais compartilharam o poder com um governo civil encabeçado por Aung San Suu Kyi. As Tatmadaw, como são conhecidas as Forças Armadas, são profundamente conservadoras, chegando a emitir comunicados oficiais em que opinam sobre a importância de senhoras corretas usarem vestuário modesto.

Não há mulheres nos altos escalões das Tatmadaw, cujos soldados sistematicamente cometem estupros coletivos de mulheres de minorias étnicas, segundo investigações da ONU. Na visão de mundo dos generais, as mulheres frequentemente são consideradas fracas e impuras. As hierarquias religiosas tradicionais neste país predominantemente budista também situam as mulheres aos pés dos homens.

Os preconceitos dos militares e religiosos não são necessariamente compartilhados pela sociedade mianmarense mais ampla. As mulheres têm instrução e são vitais à economia, especialmente nos setores comerciais, manufatureiro e do funcionalismo público. Cada vez mais mulheres vêm encontrando sua voz política. Nas eleições de novembro passado, cerca de 20% dos candidatos da Liga Nacional pela Democracia, o partido de Suu Kyi, foram mulheres.

O partido ganhou com maioria arrasadora, derrotando redondamente o Partido da União Solidária e Desenvolvimento, mais dominado por homens. As Tatmadaw consideraram o resultado fraudulento.

“Nós, mulheres, assumimos a dianteira na luta contra a ditadura porque achamos que essa é nossa causa”, disse Ma Ei Thinzar Maung, 27, ex-presa política que, ao lado de outra mulher da mesma idade, liderou a primeira manifestação pública em Rangoon contra o golpe, cinco dias após a tomada de poder.

Tanto Ei Thinzar Maung quanto sua colega líder de protestos, Esther Ze Naw, participam de protestos durante o dia e se escondem à noite. Cerca de 1.500 pessoas já foram detidas desde o golpe, segundo uma organização local de monitoramento.

As duas são politizadas desde muito jovens e ergueram suas vozes em defesa das minorias étnicas num momento em que a maioria das pessoas em Mianmar não queria admitir a campanha de limpeza étnica lançada pelos militares contra os muçulmanos rohingyas. Pelo menos um terço da população mianmarense é composta de uma constelação de minorias étnicas, algumas das quais envolvidas em conflitos armados com os militares.

As duas mulheres lideraram um protesto em 6 de fevereiro usando camisetas associadas ao grupo étnico dos karens, cujos vilarejos foram invadidos por tropas das Tatmadaw nos últimos dias. Esther Ze Naw faz parte de outra minoria, os kachin. Quando tinha 17 anos, passou tempo nos campos para os quais foram enviados dezenas de milhares de civis arrancados de suas casas por ofensivas das Tatmadaw. Ela recordou como jatos militares sobrevoavam os campos, lançando artilharia sobre mulheres e crianças.

“Foi nessa época que eu me engajei na luta para abolir a junta militar”, ela contou. “As pessoas que fazem parte de minorias sabem como é isso, sabem para onde leva a discriminação. E nós mulheres ainda somos vistas como um segundo sexo.”

“Essa deve ser uma das razões por que as ativistas mulheres parecem ser mais engajadas com questões de direitos humanos”, acrescentou.

A Liga Nacional pela Democracia é liderada por Suu Kyi, mas homens predominam em seus escalões superiores. E, como as Tatmadaw, esses escalões superiores tendem a ser reservados a membros da maioria étnica mianmarense, os bamar.

Enquanto as forças de segurança continuam a atirar contra manifestantes desarmados nas ruas de Mianmar, a composição do movimento de protesto é muito mais diversa. Há estudantes muçulmanos, freiras católicas, monges budistas, drag queens e uma legião de mulheres jovens.

“A geração X é uma geração destemida”, disse Honey Aung, cuja irmã mais jovem, Kyawt Nandar Aung, foi morta com uma bala na cabeça na cidade de Monywa, na quarta-feira. “Minha irmã participava dos protestos todos os dias. Ela odiava a ditadura.”

Em discurso transmitido nesta semana por uma publicação de propaganda oficial, Min Aung Hlaing, o chefe do Exército, expressou desprezo pela impropriedade das manifestantes, com suas “vestimentas indecentes, contrárias à cultura de Mianmar”. A visão geral é que essa definição abrange mulheres que usam calças.

Momentos antes de ser baleada e morta, Kyal Sin, usando tênis e jeans rasgado, estava mobilizando outros manifestantes pacíficos.

Enquanto as pessoas fugiam do gás lacrimogêneo lançado pelas forças de segurança na quarta-feira, Kyal Sin trazia água para lavar seus olhos. “Não vamos fugir”, ela gritou em vídeo gravado por outra manifestante. “O sangue de nosso povo não pode chegar ao chão.”

“Ela é a garota mais corajosa que já vi na vida”, comentou Ko Lu Maw, que fez algumas das imagens finais de Kyal Sin em pose alerta e altiva em meio a uma multidão de manifestantes prostrados.

Debaixo da camiseta Kyal Sin usava um pingente em formato de estrela. Seu nome significa “estrela pura” em birmanês.

Sua amiga Cho Nwe Oo recordou: “Ela dizia: ‘Se você vir uma estrela, lembre-se, sou eu’. Sempre me lembrarei dela com orgulho.”

Tradução de Clara Allain

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