Militares não conseguirão impor antigo nível de controle em Mianmar, diz jornalista que fugiu do país

Aye Min Thant conta que população tem encontrado formas de se informar apesar de bloqueios à internet

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Daniel Avelar
São Paulo

Para Aye Min Thant, jornalista que recebeu o Prêmio Pulitzer em 2019, as Forças Armadas de Mianmar, que reassumiram o poder após um golpe de Estado em fevereiro, não conseguirão restabelecer o mesmo nível de controle exercido por eles durante a ditadura militar (1962-2011).

“Mesmo com os bloqueios às redes sociais e a censura aos meios de comunicação, as pessoas têm encontrado diferentes formas de acessar informação. E os militares sabem que, se cortarem todo o acesso à internet, eles próprios acabarão se prejudicando, pois também dependem desse serviço”, afirma.

Mianmarense, Thant fugiu de Rangoon e está em Bancoc, na Tailândia, de onde falou à Folha, por chamada de vídeo. “Familiares meus estão na cadeia, pessoas que eu conheço foram mortas. Não quero virar mártir, quero poder usufruir da democracia em Mianmar quando enfim conseguirmos restabelecê-la”.

Manifestante em Yangon corre durante protesto contra golpe militar em Mianmar
Manifestante em Rangoon corre durante protesto contra golpe militar em Mianmar - 16.mar.21/AFP

Em 1º de fevereiro, o Exército depôs o governo eleito e prendeu a líder civil Aung San Suu Kyi sob alegações de fraude —até agora sem evidências— no pleito de novembro, em que o partido pró-militares sofreu uma derrota esmagadora para a Liga Nacional pela Democracia (LND).

Neste sábado (27), Mianmar celebra o Dia das Forças Armadas, e ativistas planejam novos atos sob temor de mais violência —ao menos 320 manifestantes pró-democracia foram mortos desde o golpe. Thant, que ganhou o Pulitzer devido à cobertura da limpeza étnica contra a minoria muçulmana rohingya quando trabalhava para a agência de notícias Reuters, diz que, “se os militares decidirem ser ainda mais violentos do que têm sido até agora, este será o momento”.

Como tem sido sua vida desde o golpe? Um caos. Comecei a escrever um resumo diário dos acontecimentos no país e a compartilhar com meus seguidores no Twitter até para poder me situar, pois tudo muda o tempo todo. Era de esperar que as coisas fossem mais organizadas, uma vez que quem deu o golpe foi o Exército, uma instituição hierárquica, mas na realidade o processo tem sido um tanto aleatório. Depois que os militares tomaram o poder e prenderam Suu Kyi junto a outros 150 líderes da LND, ativistas pró-democracia estavam com medo de sair para a rua, mas não foram perseguidos em um primeiro momento. Parecia que as Forças Armadas não contavam com a insatisfação da população.

Com o passar dos dias, funcionários públicos começaram a organizar um movimento de desobediência civil. Também se juntaram trabalhadores sindicalizados, ferroviários, portuários e mulheres da indústria de vestuário, e os protestos de rua foram tomando corpo. O que une todas essas pessoas é o ódio pelos militares. Há alguns comícios pequenos de apoiadores do golpe, mas eu diria que menos de 10% da população está do lado das Forças Armadas. Não tenho me juntado aos protestos por ser jornalista, não me sinto confortável sendo participante de um evento que estou cobrindo, mas alguns colegas têm ido.

Aye Min Thant, jornalista de Mianmar
Aye Min Thant, jornalista de Mianmar - Reprodução

Como os bloqueios às redes sociais têm afetado o movimento de desobediência civil? Esse é um movimento primariamente organizado nas redes sociais. As Forças Armadas baniram Facebook, Twitter e outras plataformas para tentar sufocar os protestos. Pelas minhas contas, houve ainda 39 bloqueios noturnos à internet e 11 dias em que todas as redes móveis foram suspensas. Mas as pessoas encontraram outras formas de acessar a internet. A maioria dos quadros da LND tem mais de 60 anos e, quando eles foram presos, surgiu um vácuo de liderança. Os líderes dos protestos contra o golpe são mais jovens e já sabiam como usar VPNs para acessar pornografia, Tinder e até mesmo alguns sites de direitos humanos que haviam sido banidos pelo governo anterior. Vale pontuar que o governo da LND, mesmo tendo sido eleito democraticamente, era um tanto autoritário.

Diante dos bloqueios, jornalistas reservaram quartos de hotéis de luxo para poder usar wi-fi, que não foi derrubado. Outros cidadãos, especialmente em áreas de minorias étnicas, onde a internet sempre foi escassa, ativaram rádios piratas. Então, mesmo com os bloqueios às redes sociais e a censura aos meios de comunicação, as pessoas têm encontrado formas de acessar informação. E os militares sabem que, se cortarem todo o acesso à internet no país, eles próprios acabarão se prejudicando, pois também dependem desse serviço. Apesar dos esforços, os generais golpistas não conseguirão estabelecer o mesmo nível de controle que exerciam no passado, a menos que decidam "se ferrar" no processo.

Como o governo militar tem agido em relação à pandemia? A gestão da pandemia pelo governo da LND era muito criticada pelos militares, e eles usaram a Covid-19 como uma justificativa para dar o golpe. Em seu primeiro pronunciamento, o comandante Min Aung Hlaing anunciou estado de emergência com o objetivo de recuperar a economia. Apesar de Mianmar ter no papel algumas das medidas mais restritivas contra a Covid-19, na prática as pessoas continuam saindo de casa em várias partes do país. Não é o caso de outras regiões, especialmente áreas de minorias étnicas e distritos onde vivem trabalhadores de indústrias, onde, além das restrições da pandemia, foi imposta lei marcial depois do golpe.

Mesmo antes de os militares assumirem o poder, a pobreza já havia aumentado muito. Para piorar, os preços de comida e combustível dispararam. A pandemia reverteu grande parte dos avanços da última década, e o golpe pode piorar ainda mais a situação.

O governo de Suu Kyi foi criticado por omissão diante do genocídio dos rohingyas. O que as minorias étnicas de Mianmar devem esperar agora, com os militares de volta ao poder? Os militares contrataram uma agência de relações públicas para difundir internacionalmente a narrativa de que o governo da LND foi o verdadeiro responsável pela campanha de limpeza étnica e que as Forças Armadas estão prontas para negociar o retorno dos rohingyas expulsos do país nos últimos anos, ainda que não os reconheçam como cidadãos de Mianmar. A verdade é que a relação entre os militares e os grupos armados que dizem representar algumas minorias étnicas é bastante complicada.

Em teoria, eles estão em guerra há muitas décadas, mas na prática o que acontece muitas vezes é uma colaboração para permitir a extração de recursos minerais nas áreas onde essas minorias vivem. Existe, sim, um ódio racial contra as minorias, mas há sobretudo um estímulo econômico para oprimir os pobres e extrair recursos da terra. É um modelo capitalista extrativista que beneficia tanto os militares quanto as lideranças locais, mas que explora os povos que vivem nessas regiões.

O que a comunidade internacional pode fazer para ajudar a proteger a democracia em Mianmar? Existe uma campanha por sanções contra os golpistas e pelo desinvestimento de empresas controladas pelos militares. O governo dos EUA recentemente aderiu às sanções e congelou mais de US$ 1 bilhão em recursos de militares mianmarenses em solo americano. Mas a realidade é que as Forças Armadas não ligam muito para o que o Ocidente tem a dizer, elas mantiveram por 60 anos uma das ditaduras mais repressivas e isoladas do mundo.

Quem conseguiria fazer algum tipo de pressão seriam os parceiros asiáticos, como Índia, China e Japão, que controlam os maiores investimentos em Mianmar. Além disso, os outros países devem estar preparados para receber refugiados e oferecer os recursos necessários para que ativistas sigam lutando pela democracia no exílio. A insegurança alimentar também será um problema muito grande nos próximos meses, então é importante dar ajuda humanitária.

Por que decidiu fugir de Mianmar? Fugi agora porque consegui reservar um voo antes de 27 de março, que é quando se celebra o Dia das Forças Armadas. Se os militares decidirem ser ainda mais violentos do que têm sido até agora, este será o momento. Muitas pessoas que eu amo também estavam no mesmo voo, sem que tivéssemos combinado de viajar na mesma data. No aeroporto, a situação era tensa, alguns já foram detidos ao tentar sair do país. Eu tenho medo. Ouvi histórias de pessoas que foram presas e pareciam ter sido torturadas, outras que receberam os corpos de seus parentes com órgãos faltando. Familiares meus estão na cadeia, pessoas que eu conheço foram mortas. Eu não quero virar mártir, eu quero poder usufruir da democracia em Mianmar quando enfim conseguirmos restabelecê-la.


Raio-x

Aye Min Thant
Jornalista, ganhou o Prêmio Pulitzer em 2019 junto aos então colegas na agência de notícias Reuters. Tem formação em antropologia pela Universidade da Califórnia (EUA) e mestrado em estudos do Sudeste Asiático pela Universidade Cornell (EUA).

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