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Brics terrorismo

Biden tenta tirar tropas do Afeganistão e coloca país à mercê do Taleban

Retirada do 'cemitério de impérios' já falhou outras vezes, mas fastio com guerra parece decisivo

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São Paulo

Entra ano, sai ano, e mais um presidente americano promete encerrar a mais longa guerra em que os Estados Unidos se envolveram. Até aqui, todos fracassaram em deixar o atoleiro do Afeganistão.

Agora é a vez de Joe Biden tentar retirar suas tropas, marcando como prazo o simbólico 11 de setembro, no qual o evento definidor do início do século 21 completa 20 anos.

Soldados americanos patrulham estrada afegã protegidos por um tanque dinamarquês, em 2010
Soldados americanos patrulham estrada afegã protegidos por um tanque dinamarquês, em 2010 - Patrick Baz - 21.fev.2010/AFP

Como em sua política para a China, Biden está repetindo e amplificando os passos de seu criticado antecessor, Donald Trump. Foi o republicano quem aceitou que o grupo fundamentalista Taleban integrasse negociações com o governo afegão e com os EUA.

Do jeito que se anuncia a decisão que será oficializada nesta quarta (14), a confiar nos relatos disponíveis, a retirada é o que parece: uma entrega de pontos e confissão final de derrota, com alguns detalhes que parecem deixar o Afeganistão à mercê dos medievais islâmicos que o governaram de 1996 a 2001.

Isso decorre de dois pontos. Primeiro, as negociações com o Taleban sempre foram claudicantes, e o grupo já havia dito que voltaria a atividades militares e ataques terroristas caso o prazo de 1º de maio para a retirada de tropas não fosse respeitado. Hoje há oficialmente 2.500 americanos no país, mas o número real deve chegar a 3.500. Além disso, há 7.000 militares de países aliados, a maior parte deles da Otan (aliança militar do Ocidente), loucos para ir embora da aventura do chefe do clube.

Se todos estiverem fora até setembro, o Taleban terá tido pouco mais de quatro meses para reforçar sua posição militar e impor suas vontades na mesa de negociação com o frágil governo afegão —considerando uma hipótese otimista. Um cenário mais sombrio vê o país jogado de volta à guerra civil legada pelos mesmos EUA em 1989, quando o apoio dado ao "mujahedin" contra a década de invasão soviética ajudou a expulsar os comunistas, mas não se reverteu em reconstrução nacional.

É claro que são realidades distintas, dado que hoje há atores regionais como Turquia e Irã presentes na economia do país, os americanos armaram fortemente o Exército afegão e houve uma pequena medida de liberalização de costumes. O problema é a real fidelidade do soldado ao governo central numa sociedade dominada por relações tribais. Como diziam os talebans da embaixada do país no Paquistão em 2001 ou em áreas fronteiriças nos anos seguintes, no fim os estrangeiros vão cansar, e as leis locais irão se impor.

Cabe lembrar que, aos olhos dos afegãos comuns, o Taleban não foi o responsável pela guerra. O grupo abrigava na base da camaradagem a Al Qaeda de Osama bin Laden, que lançou os ataques contra os EUA em 2001, mas não era parte dela. O papel do Paquistão, mentor intelectual do Taleban como forma de ter o vizinho a seu lado na disputa regional com a Índia, também precisa ser acompanhado. De 2001 para cá, o país saiu da órbita americana e caiu nas malhas chinesas, seu maior parceiro militar e econômico.

Pequim sempre esteve à margem do conflito, e sua política para os muçulmanos uigures é alvo de críticas no Taleban. Mas seu poder econômico e interesse estratégico na estabilidade de sua fronteira sul pode levar a movimentos mais incisivos, talvez sob auspícios paquistaneses.

Não por acaso, de olho em sua própria projeção, os russos têm buscado maior aproximação com Islamabad, como a visita do chanceler Serguei Lavrov na semana passada demonstrou. É a volta do jogo entre potências num campo em que a assimetria entre combatentes parecia ter acabado com as velhas regras. Para os afegãos, resta o sofrimento e dúvidas acerca do futuro.

A maioria esmagadora de vítimas do conflito até aqui, cerca de 160 mil segundo o projeto Custos da Guerra, da Universidade Brown (EUA), é afegã —militares, civis e insurgentes. Morreram cerca de 2.300 americanos em uniforme e outros 4.000 mercenários. Essa é uma particularidade a checar, o destino dos empregados privados da guerra.

Se o auge de participação fardada americana foi em 2010, com 97 mil soldados, em 2012 os mercenários somavam quase 120 mil pessoas em campo. A mais longa guerra não foi, nem de longe, a mais mortífera para os americanos. Esse título fica no exterior para a Segunda Guerra Mundial (1941-45 para os EUA), com 405 mil mortos, e no campo doméstico, para a Guerra Civil (1861-65) e suas 655 mil vítimas.

O Afeganistão parece permanecer impossível de conquistar, como já teria vaticinado o grande imperador muçulmano Babur no século 16. "O cemitério dos impérios" foi o apelido que pegou no século 20, após duas derrotas britânicas e uma soviética —com velocidades bem diferentes, ambos os dominadores foram expulsos e viram seu poder ruir depois.

Em plena disputa geopolítica com a China, as contas de Biden não parecem incluir tais superstições. O fastio do público americano com a guerra já existe há anos, e uma geração inteira cresceu impactada pelas suas sombras. A volta das grandes disputas entre nações não vai enterrar o terrorismo e pode deixar campo aberto para novos 11/9, mas a roda girou, e Biden parece decidido a ir em frente.

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