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Ortega traçou plano para nunca mais deixar o poder, e repressão vai continuar, diz ex-vice

Para ex-líder sandinista Sergio Ramírez, ditador da Nicarágua teme surgimento de opositor carismático

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Buenos Aires

Sergio Ramírez, 78, conhece bem Daniel Ortega. Escritor e ex-integrante da Frente Sandinista de Libertação Nacional, responsável por derrubar o regime autocrático de Anastasio Somoza, nos anos 1970, ele foi vice-presidente do país entre 1985 e 1990 e, portanto, número dois do hoje ditador da Nicarágua.

Depois, por desentendimentos com Ortega, fundou um partido dissidente, o Movimento Renovador Sandinista (MRS), pelo qual foi candidato presidencial derrotado nas eleições de 1996. Desde então, dedica-se à literatura e é um crítico do ex-companheiro de governo transformado em autocrata.

"Ortega traçou um plano para nunca mais deixar o poder. A repressão seguirá, não há sanção internacional que o assuste", afirma. Dos EUA, onde espera ficar "até as coisas acalmarem", já que nas últimas três semanas o regime prendeu cinco pré-candidatos presidenciais, Ramírez falou por videoconferência.

O ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, discursa a apoiadores em Manágua
O ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, discursa a apoiadores em Manágua - Marvin Recinos - 7.jul.18/AFP

A que se deve essa escalada de Ortega para perseguir opositores? Desde que Ortega regressou à Presidência, em 2006, fez a si mesmo o juramento de nunca mais deixar o poder. Ele considerou um erro ter aceito os resultados eleitorais de 1990, quando Violeta Chamorro, uma ex-aliada do sandinismo que passou a defender uma linha mais de centro, foi eleita. Ao retornar ao poder, começou a traçar um plano para ficar nele para sempre. Uma das ações foi aprovar a reeleição indefinida. Em alguns momentos de sua gestão, o país foi bem. A economia estava melhor, a oposição estava dividida, ele era aliado dos empresários. Por isso, a última eleição foi um passeio para ele. Proclamou-se ganhador com mais de 70% dos votos [72,5%] e conseguiu uma maioria esmagadora na Assembleia Nacional.

Sergio Ramirez, escritor e ex-vice presidente da Nicarágua, durante entrevista coletiva em Manágua
Sergio Ramírez, escritor e ex-vice presidente da Nicarágua, durante entrevista coletiva em Manágua - Inti Ocon - 1º.jun.21/AFP

Agora o quadro é outro? Sim. Ainda que não pareça para quem está fora, há uma situação complicada para ele. A economia está deteriorada, e o surgimento de um candidato opositor mais forte traria dificuldades para promover uma fraude que escondesse uma derrota. Por isso, ele começou a tentar dividir a oposição e passou a armar intrigas e a mudar leis para que as vantagens fossem para ele.

Renovou o Conselho Eleitoral com sete magistrados fiéis e nomeados por ele, sem passar pelo Parlamento. Hoje, tem o controle total do aparato eleitoral. Mesmo assim, a ascensão de uma figura forte da oposição podia lhe causar um trabalho imenso. E isso estava começando a acontecer com Cristiana Chamorro [uma das cinco pré-candidatas presidenciais presas]. Ela é uma mulher carismática, e carisma é algo que falta a ele. Assim, a possível candidatura dela o assustava muito.

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Há um rancor entre as famílias, não? Os Chamorro eram aliados do sandinismo. Além de Violeta, mãe de Cristiana, há Carlos, que era um apoiador e hoje dirige o principal veículo independente do país. Sem dúvida. E a figura de Pedro Joaquín Chamorro [pai de Cristiana e Carlos, marido de Violeta e mártir do sandinismo] ainda assombra Ortega, porque representava o jornalismo opositor e heroico contra Somoza. Sem dúvida há um impulso de Ortega de reescrever a história da Revolução Sandinista e de minimizar a participação dos Chamorro. Há um rancor contra a família, ao mesmo tempo que foram unidos pela história. A mulher de Ortega, a também poderosa Rosario Murillo, hoje vice-presidente, também trabalhou no [jornal] La Prensa, com Pedro Joaquín Chamorro. Há ressentimentos históricos nessa disputa.

O que mudou depois de 2018, quando houve imensa onda de protestos reprimida brutalmente? É o ano em que o humor em relação a Ortega começou a mudar. As pessoas saíram às ruas, houve muita violência, o regime mostrou que tinha uma força paramilitar e mais de 300 pessoas foram mortas. A opinião pública, então, voltou-se contra ele, e começou seu desgaste popular. Por outro lado, ele sabe que o medo de sair às ruas para protestar contra o governo hoje é grande, mas que a população pode expressar seu descontentamento por meio do voto. Daí a preocupação com as eleições.

Como Ortega quer desenhar essa eleição? No momento, com cinco pré-candidatos fora do jogo, o único opositor sério é Medardo Mairena, um líder camponês que liderou a luta contra a construção de um canal [que Ortega negociou com uma empresa chinesa, mas que nunca foi adiante] parecido com o canal do Panamá. Creio que ele pode ser preso ou neutralizado a qualquer momento. Depois, Ortega tentará armar um circo com uma oposição de fantoche, alinhada a ele, e ganhará a eleição novamente.

É um método que ele toma emprestado do chavismo? Sim, mas as diferenças entre os dois países fazem com que esse método possa não funcionar na Nicarágua. Na Venezuela funciona porque lá há muito dinheiro. O regime está metido em várias ações ilícitas, contrabando, exploração de ouro, narcotráfico, há muito dinheiro para financiar um aparato desses. Com a Nicarágua a questão é diferente. É um país cuja economia está articulada com o comércio dos EUA. Mais de 60% do que a Nicarágua exporta vai para o mercado norte-americano. A Nicarágua não tem recursos naturais além do ouro, e mesmo o ouro é explorado por meio de companhias canadenses e dos EUA. Ou seja, esse discurso anti-americano, anti-imperialista, do chavismo, não pode ser aplicado na Nicarágua.

O recente relatório da ONG Human Rights Watch pede sanções a Ortega, Murillo e a outros membros da cúpula do regime. Pode servir de algo? Não creio. Quase todo o governo Ortega recebeu sanções: seus filhos, sua mulher, os ministros-chave, o chefe do Exército, da polícia. Não creio que teria um efeito real para conter Ortega. Ele não se assusta com isso. E mesmo o Senado dos EUA parece que sairá com uma lei de sanções nesses dias contra Ortega.

O que vem adiante, então? Ortega vai recrudescer a repressão. Vai continuar prendendo, vai continuar a empurrar o "establishment" —empresários, banqueiros, jornalistas— para fora. Sem contar os dissidentes do sandinismo.

O senhor foi vice-presidente dele. Hoje, o reconhece como presidente? De maneira nenhuma. Estamos em um outro tempo. Aqueles foram momentos heroicos. As pessoas mudam, transformam-se. Acho também que, em 1980, ele não poderia ter se transformado num caudilho, porque éramos um governo mais coletivo, havia uma junta, com várias tendências. E era preciso encontrar um equilíbrio para não colocar nossa vitória a perder. A deriva autoritária de Ortega vem depois. Quando, nos anos 1990, houve dissidências como a nossa, ele se sentiu ferido e se aferrou a esse projeto.


Raio-x

Sergio Ramírez, 78
Fez parte da Junta de Governo de Reconstrução nacional, criada após a vitória da Revolução Sandinista, em 1979, e foi vice-presidente de Daniel Ortega (1985-1990). Rompeu com o ex-aliado em 1996 e concorreu à Presidência pelo Movimento Renovador Sandinista. Como escritor, publicou obras como "La Fugitiva" e "Está Linda la Mar" e ganhou o prêmio Cervantes (o principal da língua espanhola) em 2017. É criador e organizador do festival Centroamerica Cuenta, que lança novos autores centro-americanos.

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