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Thyago Nogueira

Vinte anos separam corpos em queda em Nova York e Cabul, unidos por coincidências terríveis

Ignóbil invasão americana no Afeganistão termina com repetição das imagens de aviões e de pessoas caindo

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Montagem mostra fotos com homem se jogando das Torres Gêmeas no ataque de 11 de Setembro de 2001 e corpos caindo de avião que decolou do aeroporto de Cabul, em 16 de agosto de 2021, após a tomada do Talibã

Montagem mostra fotos com homem se jogando das Torres Gêmeas no ataque de 11 de Setembro de 2001 e corpos caindo de avião que decolou do aeroporto de Cabul, em 16 de agosto de 2021, após a tomada do Talibã Jose Jimenez/Primera Hora/Getty Images/AFP e Asvaka News/Reuters

Thyago Nogueira

Curador e coordenador de fotografia contemporânea no Instituto Moreira Salles

Vinte anos separam as imagens do 11 de Setembro dos vídeos recentes do aeroporto de Cabul. O que as une é a história americana e algumas mórbidas coincidências.

Em 11 de setembro de 2001, um atentado terrorista estremeceu Nova York ao demolir as Torres Gêmeas, obeliscos-mor do poderio americano. Vidrados nas televisões, acompanhamos ao vivo as nuvens de fumaça e fogo que engoliram prédios e vidas.

Era a violência em estado bruto, gratuita, visível. Era também, como apontou a filósofa Marie-José Mondzain, um novo capítulo do embate entre a iconocracia cristã, transfigurada na idolatria capitalista, e a iconoclastia fundamentalista, injustamente debitada na conta do mundo islâmico. Controlar o que se vê é controlar o mundo.

Mas foram as cenas humanas que abriram as maiores feridas. Ao rés do chão, rostos desesperados se arrastavam num mar de cinzas em busca de amparo e saída; do azul do céu, Ícaros de outrora despencavam como mártires, consumidos pelo fogo, medo ou exaustão.

Homem se joga do edifício um das Torres Gêmeas, em NY, após avião atingir prédio
Homem se joga do edifício norte das Torres Gêmeas, em NY, após avião atingir prédio - Jose Jimenez - 11.set.01/Primera Hora /Getty Images/AFP

Ao explodir as torres com mísseis humanos, os terroristas da Al Qaeda apunhalavam o coração da América, atacando de forma covarde o símbolo fálico de sua prosperidade e idolatria. Enquanto isso, Osama bin Laden arrastava o mundo para as cavernas do Afeganistão, recobrindo-o de terror e sombras, paranoia e ignorância, rebobinando o mito de Platão.

Ajoelhados contra o fogo da violência até então infigurável, embaralhamos nossa própria consciência das imagens: alguns viram ali o primeiro ato do século 21; outros, o castigo da arrogância americana e o revide da ficção científica; ainda mais desnorteados, houve quem associasse as imagens a uma arrojada performance artística.

A verdade é que as imagens não carregam consigo seu sentido. Ao recortarem um fragmento da realidade, muitas vezes oferecem um enigma, que então serve a propósitos distintos. As cenas da tragédia angariaram solidariedade às vítimas e expuseram o perigo crescente de organizações terroristas, mas também ofereceram o pretexto injustificável para liberar os instintos revanchistas de George Bush na infame Guerra ao Terror com a invasão do Afeganistão e, depois, do Iraque.

Açodar o Talibã e matar Bin Laden custou dez anos, milhares de vidas e bilhões de dólares. A década seguinte foi desperdiçada com a tentativa de construir um governo afegão democrático à imagem e semelhança dos Estados Unidos, como se fosse possível transformar um país numa imagem espelhada.

Muito antes de Susan Sontag, os Estados Unidos aprenderam que toda guerra é também uma guerra de imagens. A presença maciça de fotojornalistas no Vietnã deu cobertura inédita ao conflito, mas a profusão de mortes de ambos os lados inverteu a opinião pública, culminando na debandada de Saigon.

Como sustentar a imagem excruciante da pequena Kim Phuc Phan Thi, nua e queimada, fugindo de um bombardeio de napalm?

A invasão afegã durou 20 anos, mas dela pouco se viu. Ou melhor, viu-se em geral o que foi autorizado.

Desde o 11 de Setembro, Bush censurou os corpos americanos e restringiu os fronts da invasão. Dizendo preservar a dignidade das vítimas, a imprensa aderiu. Mas dignidade se preserva com a ausência de vítimas, não com a supressão de imagens.

Governos controlam o acesso ao Exército e autorizam ou não a publicação de imagens. Na imprensa, escondem-se os corpos destroçados, a não ser que pertençam a uma nação distante ou inimiga. O combate surge edulcorado em cenários dramáticos e pontos de vistas cinematográficos.

Entram em cena o pudor dos gabinetes, mapeamentos de satélites e rastros de mísseis. A instituição do fotojornalismo, que amadureceu na Primeira Guerra, cruzou o século 21 não raro correndo o risco de virar propaganda de Estado.

Agora, o democrata Joe Biden encerra o capítulo afegão pondo fim à ocupação. O que parecia decisão sensata revelou-se aventura malograda. Gastos estratosféricos, planejamento pífio, restrições às liberdades individuais e violações de direitos humanos: a história terminava tão mal quanto começara.

A retirada americana e a volta do Talibã ao poder lançaram o país ao desespero absoluto, lotando o aeroporto de Cabul. Jovens, velhos, adultos, crianças corriam por suas vidas, invadindo as pistas de pouso para embarcar em qualquer voo que partisse.

Numa das cenas mais chocantes, homens se penduraram na fuselagem de um enorme C-17 americano. O avião avança pela pista, o piloto decola impassível, a câmera o acompanha do chão. Em poucos instantes, afegãos valentes e desesperados despencam dos ares, apenas porque buscavam uma saída. O jovem Zaki Anwari foi esmagado pelo trem de pouso. Despencamos junto. A chuva de inocentes é a guerra visível.

Corpos caem de cargueiro militar americano que decolou de Cabul após tomada talibã
Corpos caem de cargueiro militar americano que decolou de Cabul após tomada talibã - 16.ago.21/Asvaka News/Reuters

É apenas terrível coincidência que as imagens que abrem e encerram a ignóbil invasão americana exibam aviões e corpos caindo. Corpos caem a todo o instante. Em 2001, 2021 e em qualquer tempo, quem despenca são as vítimas, cidadãos de todas as nacionalidades empurrados pelo tabuleiro político.

Durante a ditadura chilena, apoiada pelos EUA, aviões lançaram ao mar pessoas amarradas para se livrar de desafetos políticos. Na recente crise migratória, milhares de homens e mulheres despencaram aos mares enquanto tentavam se agarrar à vida em outros países. Como o som da árvore que cai na floresta isolada, mesmo que não vejamos essas imagens, elas existem. O descaso também é crime.

Tomadas em solo americano, as cenas de 20 anos atrás foram habilmente manejadas como armas do conflito, veiculadas para moldar a opinião pública e justificar a invasão. Em manobra sagaz, a destruição do grande ícone foi transformada em novo ícone, capaz de sustentar outro tipo de guerra santa.

Não menos violentas, as imagens de Cabul aguardam seu destino. O fato de que foram feitas por amadores, como costumam ser as imagens mais subversivas, e não por conglomerados de mídia, lhes dá maior autenticidade.

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Devemos evitar a tentação de olhar essas cenas apenas por seu valor de face, como querem que as vejamos (em reviravolta covarde, Biden culpou o povo afegão pelo retorno do Talibã, acusando-o de apatia e complacência). Se assim acedermos, faremos coro ao alerta de Sontag: as fotografias depõem em favor das vítimas, mas infelizmente nada podem fazer por elas.

As cenas do aeroporto não são imagens de cidadãos desesperados e humilhados, mas da face crua do fracasso americano, companheiras de um álbum que inclui Vietnã, Hiroshima e Abu Ghraib.

Ao responsabilizarem os Estados Unidos, é provável que essas imagens logo sejam esquecidas ou substituídas pelas de outro conflito. Afinal, a história das guerras é a história dos vencedores sobre os vencidos. Mas se, em vez da ganância, quisermos perseguir a verdade, não podemos nos distrair com as imagens. Ver imagens não é o mesmo que conhecê-las. E é preciso lutar por seus sentidos.

Caso contrário, continuaremos para sempre prisioneiros da caverna do mito.

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