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'Não sei quanto mais aguentaremos', diz jornalista escondido do Talibã no Afeganistão

Ameaçados de morte, repórteres pedem ajuda internacional para sair do país

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São Paulo

“Odeio escrever esses emails. Sei o quão grave é a situação. Queria que tivéssemos alguma solução mágica ou alguma sugestão que fosse… A dura verdade é que simplesmente não temos.”

Com essas palavras, a porta-voz de uma organização internacional respondeu ao apelo de um jornalista afegão que pede ajuda para sair do país.

Repórter de uma TV privada em Cabul e com um familiar vivendo no Brasil, ele é um dos milhares de profissionais da imprensa que têm lotado as caixas de entrada de entidades de defesa de direitos humanos desde que o Talibã passou a controlar o governo, no último dia 15.

Entrevista coletiva com integrantes do Talibã, entre eles o porta-voz Zabihullah Mujahid, em Cabul - Jim Huylebroek - 17.ago.21/The New York Times

Eles temem retaliações por terem veiculado no passado reportagens críticas ao grupo fundamentalista. Apesar da corrida para obter vistos, vagas em voos e salvo-condutos para a entrada no aeroporto de Cabul, foram poucos os que conseguiram fugir do país —basicamente aqueles que colaboraram com meios de comunicação ocidentais, e mesmo esses não foram resgatados em sua totalidade.

As organizações de apoio, que já encaravam um périplo para obter vistos e realocar esses profissionais em outros países, ficaram praticamente sem opções desde 31 de agosto, quando o último militar americano deixou o solo afegão. O aeroporto voltou para o controle do Talibã e parou de funcionar —uma equipe qatari trabalha para reabilitá-lo. As fronteiras terrestres com o Paquistão e o Irã também estão fechadas.

Presos com suas famílias dentro de casa ou em esconderijos improvisados, esses jornalistas estão sem receber salário e impossibilitados de tirar dinheiro de suas contas bancárias, que foram confiscadas.

“Não temos visto, não há voos, não há opção para sair. Então nós estamos aqui, esperando”, resume o repórter Ali, que trabalhava para a TV estatal afegã, a RTA.

Do quartinho onde fica escondido a maior parte do tempo, ele aceitou dar entrevista para a Folha por videochamada, desde que sua verdadeira identidade não fosse revelada, por razões de segurança. Sua mulher e três filhos pequenos também estão em casa. Se alguém pergunta pelo marido, ela diz que ele não está.

Sem trabalho, sem renda e sem poder sair para comprar itens básicos, Ali diz que por enquanto não vê saída. “Fico 24 horas sem nada para fazer, só acompanhando as notícias internacionais em busca de alguma chance de migrar e salvar nossa vida. Não sei quanto mais aguentaremos."

No dia em que o Talibã entrou em Cabul, em uma ofensiva muito mais rápida do que as potências ocidentais esperavam, Ali e seus colegas da RTA tiveram pouco tempo para se preparar.

“Uma ou duas horas antes, soubemos que eles estavam chegando. Antes que nos alcançassem, escapamos. Toda a equipe conseguiu sair do escritório e se esconder. Sentíamos que eles poderiam nos matar, fizemos a única coisa que podíamos fazer naquele momento”, lembra.

Os poucos jornalistas que se atreveram a continuar trabalhando têm sofrido censura explícita ou mesmo agressões e insultos durante as entrevistas. Na RTA, nenhuma das 140 mulheres que trabalhavam na estatal até meados de agosto continua em atividade.

A organização internacional CPJ (Comitê para a Proteção dos Jornalistas) tem registros de combatentes dando socos e chutes em repórteres e confiscando telefones, câmeras e outros instrumentos de trabalho. O número de pedidos de ajuda de profissionais de imprensa afegãos ao órgão explodiu. O comitê conseguiu registrar até agora mais de 400 solicitações do tipo, mas diz que ainda está revisando milhares de outras.

“Ninguém pode levantar a voz, ninguém pode reportar a situação para a mídia internacional. Temos que nos manter em silêncio”, resume Ali.

Segundo ele, quando ainda trabalhava, ele já tinha recebido cartas de ameaça do grupo. “Eles escrevem: ‘Deixe seu trabalho ou será morto’. Eles apenas mandam o aviso e aí não deixam a pessoa viver a vida dela. Nós já fizemos reportagens contra eles tantas vezes… Mesmo antes de tomarem o poder já éramos alvo.”

Assim como o CPJ, a organização internacional RSF (Repórteres sem Fronteiras) está recebendo “dezenas e dezenas” de pedidos de jornalistas que querem ajuda para sair do país. O problema atual, afirmam, é conseguir que eles deixem o território afegão em segurança.

O porta-voz do Talibã Zabihullah Mujahid afirmou publicamente que não haveria represálias a jornalistas e que a liberdade de imprensa seria respeitada no novo governo do grupo. Até aqui não houve novas leis restritivas, mas extraoficialmente os repórteres estão sendo tratados de forma arbitrária, dizem as organizações de defesa da mídia.

Muitos veículos de comunicação suspenderam totalmente a atividade, especialmente nas províncias distantes da capital, onde a pressão é maior.

Os meios afegãos privados que continuam funcionando sofrem ameaças diárias. Em uma TV, cinco jornalistas foram agredidos e insultados. Um produtor disse à RSF que o grupo fundamentalista controla tudo na emissora, inclusive ditando o que repórteres podem dizer. Séries, novelas, programas musicais, tudo isso foi suspenso. Só há breves boletins de notícias e documentários de arquivo.

No caso das profissionais mulheres, o silenciamento é ainda mais grave. Segundo um relatório da RSF com o Centro de Proteção a Jornalistas Afegãs, das mais de 700 mulheres jornalistas de Cabul, menos de cem continuam trabalhando formalmente. “Mulheres jornalistas estão desaparecendo da capital”, diz o relatório.

No fim de agosto, correspondentes estrangeiros que ainda estavam em Cabul disseram à RSF que conseguiam trabalhar sem interferência, beneficiando-se da busca inicial do Talibã por certa legitimidade internacional.

Mas ninguém sabia até quando, ainda mais depois de o grupo divulgar uma nota, em 21 de agosto, afirmando que, antes de entrevistar a população, esses jornalistas deveriam avisar o comando do grupo ou seriam presos. No mesmo dia, o Talibã anunciou no Twitter que um comitê misto seria criado para “tranquilizar” os meios de comunicação e enfrentar os problemas trazidos por eles.

Para jornalistas como Ali, da RTA, não há mais como trabalhar em segurança no país. Por isso, ele diz que tem pensado diariamente em maneiras de emigrar.

Quando o aeroporto ainda estava aberto, ele não se arriscou a ir até o local devido à situação instável e perigosa —dezenas de pessoas foram mortas a tiros, pisoteadas pela multidão que tentava embarcar em qualquer voo ou no atentado terrorista reivindicado pelo braço afegão do Estado Islâmico.

“Os colegas que encontraram uma oportunidade de deixar o país eram homens solteiros e sem filhos. Para mim não foi possível. Tenho três crianças. Não poderia levá-las comigo naquela correria, poderia perdê-las.”

Questionado sobre o que sentiu quando o último militar americano deixou o país, no dia 30, ele respondeu: “Apenas nos sentimos sem esperança.”

Alguns afegãos têm tentado fugir para o Paquistão por terra, mas a jornada também é perigosa. Ali diz que cogita a possibilidade. “Se não houver outro jeito, teremos que correr o risco para salvar nossa vida, se tivermos sorte. Se não, teremos que encarar as consequências.”

De qualquer forma, afegãos precisam de visto para viajar a praticamente qualquer lugar do mundo, e Ali e sua família não têm esse documento. O jornalista, que tem um parente em São Paulo, está buscando informações sobre os requisitos para vir ao Brasil. O governo de Jair Bolsonaro estuda a concessão de um visto humanitário para afegãos, mas até agora isso não se concretizou.

“Estou procurando ajuda dos países que apoiam os afegãos, para que a gente possa ir para algum lugar construir uma nova vida", diz o jornalista. "Uma vida normal. Não queremos nada além disso.”


Números da imprensa no Afeganistão

  • 122º

    Posição do Afeganistão entre 180 países no ranking de liberdade de imprensa da RSF (Repórteres sem Fronteiras)

  • 434

    das 510 mulheres que trabalhavam para os 8 maiores grupos de mídia do país tiveram que suspender atividades desde que o Talibã tomou o poder

  • 100

    rádios, TVs e jornais locais pararam de funcionar nos últimos dias

  • 11

    profissionais da imprensa foram assassinados de março de 2020 até agora por membros de grupos armados no Afeganistão, especialmente do Talibã

  • 100

    jornalistas, incluindo 15 correspondentes estrangeiros, foram assassinados no Afeganistão desde a invasão dos EUA em 2001

  • 60

    meios de comunicação foram atacados nesse mesmo período

Fontes: Comitê para Proteção de Jornalistas e Repórteres sem Fronteiras
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