Variante ômicron na África expõe falta de solidariedade global com o continente

Para especialistas africanos, imposição de restrições chancela discriminação e conduz a retrocessos

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Não foi novidade. Mas nem por isso deixou de causar indignação. A resposta mundial à descoberta da variante ômicron do coronavírus, capitaneada por cientistas sul-africanos, foi recebida por países da África como um balde de água fria: prestes a retomar minimamente suas economias após quase dois anos pandêmicos, muitos deles viram as fronteiras do mundo se fecharem.

Já nas primeiras horas após o anúncio do sequenciamento da ômicron, cientistas pediam que a resposta fosse condizente com o conhecimento científico. "Espero que seja hora de fazer uma abordagem global para uma pandemia global e acabar com o nacionalismo; não é culpa das nações se os vírus evoluem", publicou no Twitter o brasileiro Túlio de Oliveira, um dos responsáveis pela identificação da variante.

Homem com máscara de proteção caminha pelas ruas de Maputo, capital moçambicana
Homem com máscara de proteção caminha pelas ruas de Maputo, capital moçambicana - Alfredo Zuniga - 6.fev.21/AFP

O que se observou dali em diante, com diversas nações fechando as fronteiras para países do sul da África, porém, chancelou a discriminação global em relação ao continente. E o que evidenciou o preconceito foi a proibição da entrada de viajantes de nações da África Austral que nem sequer haviam identificado casos da ômicron, afirma Carlos Lopes, professor da Universidade da Cidade do Cabo.

"Tem um pouco a ver com a ideia de que a África é uma coisa só, ou de que uma zona do continente é homogênea, uma associação fácil que se faz", explica. "Me lembrou do ebola, que estava afetando majoritariamente três países [Guiné, Libéria e Serra Leoa], mas falava-se como se fosse em toda a África."

Um exemplo do argumento é o caso de Moçambique. O país lusófono confirmou os dois primeiros casos da ômicron apenas na terça (30), mas, dias antes, já havia restrições contra seus viajantes nas fronteiras de países como EUA, Canadá, Austrália, França, Portugal, Itália e Alemanha.

O cenário é "claramente discriminatório", disse o diretor-geral adjunto do Instituto Nacional de Saúde de Moçambique, Eduardo Samo Gudo. "Costumo dizer que a pior pandemia não é a da doença, mas a do egoísmo, do nacionalismo e da falta de colaboração a nível global."

Ele afirma que a situação epidemiológica moçambicana é favorável —o país está no primeiro nível em uma escala nacional de cinco categorias de alerta, em que 1 significa menor transmissão, e 5, maior.

Com o fim da época de alta nos contágios ligados a doenças respiratórias agudas, a taxa semanal de resultados positivos em amostras gira em torno de 0,5% —relação que, há poucos meses, foi de 50%.

Ainda que haja influência de algum nível de subnotificação, Gudo afirma que a taxa se manteria proporcional mesmo que o ritmo de testes aumentasse. Para ele, a disponibilidade de exames, outrora um problema, hoje é suficiente. O mesmo não se pode dizer das vacinas: o país tem pouco mais de 11% da população com esquema vacinal completo, segundo o Our World in Data, ligado à Universidade de Oxford.

"Faltam vacinas, mas a aceitação da população é grande. Se Moçambique tivesse acesso completo aos imunizantes, estou certo de que nesse momento teríamos uma cobertura altíssima de vacinação."

O cientista critica ainda a efetividade do fechamento de fronteiras: "Não é baseado na ciência. Cada país é soberano para tomar decisões, mas, como cientista, olho como um retrocesso para a época medieval."

Augusto Paulo Silva, pesquisador para países africanos do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz, faz apontamento semelhante. Ele explica que a contenção da ômicron, identificada em mais de 20 países, deveria ser feita por meio de vigilância epidemiológica, isolamento dos infectados e vacinação.

"A Fiocruz juntou-se às vozes que se indignaram contra medidas que são uma punição à África do Sul e a países vizinhos por terem compartilhado dados científicos. É o apartheid reerguido devido à pandemia."

Professora de antropologia da Universidade de North-West, na África do Sul, Jess Auerbach afirma que a resposta global à ômicron esteve permeada de elementos de racismo. "O preconceito que está na imaginação e que chega a níveis estatais é uma questão que precisa ser pensada", diz.

Ela relata que a proibição levou ao desalento de sul-africanos, especialmente os da Cidade do Cabo, capital cuja economia é essencialmente baseada no turismo, que estava prestes a ser retomado.

Em artigo na revista African Arguments, a antropóloga afirma que o cenário observado pode desencorajar a transparência global. "Não nos surpreendamos se da próxima vez um país não disser nada com temor de ser culpado por resultados lógicos de uma falha global em proteger a população do planeta."

Racismo também é a palavra usada por Fatima Hassan, fundadora do Health Justice Initiative, para descrever os impactos impostos pela comunidade global à África. O projeto que lidera foi criado na África do Sul em julho de 2020 para, entre outros pontos, advogar em favor da quebra de patentes das vacinas.

Ela diz que a chegada da ômicron poderia ter sido janela de oportunidade para os países organizarem outro tipo de resposta para a África —diferentemente, por exemplo, da que foi dada quando concentraram doses de vacina e não compartilharam acesso a tecnologia.

"Mas a maneira como o mundo respondeu a isso mostrou que realmente não há solidariedade global."

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