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Vitória do blefe de Putin não resolve os problemas da Rússia, diz analista

Influente observador político, Fiodor Lukianov diz que Ocidente se mostra perdido na crise da Ucrânia

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Moscou

Para um dos mais influentes comentaristas da cena política russa, Vladimir Putin está derrotando o Ocidente com seu "grande blefe" na crise da Ucrânia: mostrar-se pronto para invadir o vizinho, embora não tenha necessariamente a intenção de ir em frente.

"A questão é que mesmo que ele vença, como parece provável, isso não irá mudar em nada os problemas da Rússia", afirma Fiodor Lukianov, editor da publicação bilíngue Russia in Global Affairs.

Tanque russo deixa área de exercícios conjuntos com Belarus, temidos pelo Ocidente como prenúncio de uma invasão da Ucrânia
Tanque russo deixa área de exercícios conjuntos com Belarus, temidos pelo Ocidente como prenúncio de uma invasão da Ucrânia - Ministério da Defesa da Rússia - 17.fev.2022/AFP

Ele conduz um programa de geopolítica na TV estatal Rússia 24 e é integrante dos mais importantes centros de análise do país —independentes na origem, mas fortemente ligados ao Kremlin, o que qualifica sua crítica até por ser voz ouvida na elite política russa.

Lukianov diz que "nunca acreditou" na hipótese de uma guerra aberta entre Moscou e Kiev, quanto mais a Otan (aliança militar ocidental), mesmo quando Putin começou sua enorme mobilização em torno do vizinho em novembro, usando ao fim 150 mil dos 900 mil militares do serviço ativo de suas Forças.

Riscos de acidentes, como é evidente, existem, como a volátil situação na linha de contato entre rebeldes separatistas apoiados pela Rússia e as forças ucranianas prova. Uma faísca fora do lugar pode iniciar um processo irreversível quando armas estão engatilhadas, como a Primeira Guerra Mundial (1914-18) ensinou.

Mas ele crê que Putin quer, ao fim, estabelecer um novo desenho para as relações de segurança internacional com a Otan com sua movimentação. "Até aqui, parece que ele vai conseguir", disse.

Ao mostrar que pode montar uma força efetiva de ataque, com múltiplos vetores, em tão pouco tempo, Putin deixou o Ocidente atônito. Restou a Joe Biden gritar "invasão iminente" desde o começo do ano, procurando uma forma de deter o vilão predileto da turma.

"O problema é que Putin está numa posição em que, se decidir fazer algo, fará e não haverá oposição real. Quando Biden diz que apoia a Ucrânia, mas avisa que nunca enviará tropas para ajudá-la, a situação está colocada. Ele deve ter desapontado muitos em Kiev", afirma.

Lukianov considera que Putin, que fará 70 anos em outubro, tem uma "obsessão" com a questão ucraniana. "Veja, ele está entrando no estágio final de seu governo. É uma etapa que pode durar muitos anos, é claro, mas ele perceptivelmente está preocupado com seu legado. E quer resolver isso", diz.

O tenente-coronel da KGB Vladimir Vladimirovitch Putin ascendeu ao poder com 47 anos, quando ocupava o posto de chefe do principal serviço secreto sucessor da temida agência soviética, o FSB (Serviço Federal de Segurança). Em 9 de agosto de 1999, foi indicado primeiro-ministro.

Na virada para o ano 2000, o presidente Boris Ieltsin renunciou e passou os poderes a ele, que foi eleito em março para o Kremlin e de lá não saiu mais —de 2008 a 2012 voltou a ser premiê no governo do pupilo Dmitri Medvedev, dando as cartas.

Em 2020, promoveu uma mudança constitucional que sempre se negara a fazer, deixando aberta a possibilidade de disputar mais duas eleições. Seu mandato atual expira em 2024, e a manobra lhe permitirá tentar ficar no poder até o começo de 2036, quando terá 83 anos.

Mas como seria essa imposição da vontade de evitar a expansão da ​Otan e manter Ucrânia e outros países ex-soviéticos, como Geórgia e Moldova, no mínimo neutros? "Diferentemente do que as pessoas acham, Putin não é um guerreiro. Ele é um manipulador bastante sofisticado, que faz cálculos a cada jogada", disse.

Assim, raciocina, uma guerra, mesmo limitada às áreas rebeldes no leste ucraniano, só trariam prejuízo a Putin. E tirariam as vantagens auferidas até aqui, dado que ser odiado no Ocidente e ter seu país sob sanções econômicas já está no preço.

E quais seriam? "Putin mostrou que a Otan está indefesa. Com essa mobilização enorme e rápida, provou que pode ir à guerra quando quiser, com capacidade", sugere Lukianov. Ele relativiza, contudo, o peso do apoio que o russo tem recebido da aliada China, algo vendido na imprensa russa como um pulo do gato para o futuro do país.

"Não se trata de uma aliança militar. A agenda do encontro entre Putin e Xi Jinping era basicamente chinesa, ele só saiu de lá com apoio moral. Mas é algo novo, de fato. Só acho que os países não vão nunca lutar um pelo outro", afirmou, sobre a reunião para selar a aproximação entre os líderes, no começo do mês.

Apesar da avaliação momentânea positiva para o Kremlin, Lukianov é sombrio sobre o futuro do putinismo —os "problemas da Rússia" que ele citou. Diferentemente de 2014, quando a anexação da Crimeia despertou uma onda patriótica que levou a popularidade do presidente para a casa dos 80%, agora o cenário é diferente.

Primeiro, a Crimeia sempre foi uma uma região russa, tendo sido dada à Ucrânia por um filho político da terra, o então chefão soviético Nikita Kruschov em 1954. Agora, apesar de as pesquisas mostrarem que os russos concordam com Putin e dizem que é o Ocidente que provoca o conflito, a causa do leste ucraniano não é popular.

Putin, que chegou a ter 89% de aprovação em 2015 segundo o Centro Levada, instituto independente, em janeiro marcava 69% —um número de fazer inveja a qualquer político ocidental, mas aquém das metas dos politicólogos de plantão no Kremlin.

A dura repressão ao dissenso político que o russo aplicou nos últimos dois anos, cujo símbolo é o encarceramento do opositor Alexei Navalni, também ainda tem efeitos inauditos sobre o espírito da geração mais jovem. Por ora, não há sinal de organização política contra o Kremlin, mas os grandes protestos de 2012, 2017, 2019 e no começo do ano passado provam que há combustível na seara.

E, como sempre, há a economia. A Rússia sofreu um baque após a crise de 2014, que uniu as sanções ocidentais à mais importante queda no preço do barril de petróleo. Em 2015, o PIB (Produto Interno Bruto) caiu 2%. Voltou à estabilidade em 2016 e andou de lado por dois anos, com um pequeno pico que acompanhou a Copa do Mundo de 2018, quando subiu 2,8%.

Só que veio a pandemia e o tombo de 2020 ficou em 2,7% negativos, para uma boa recuperação no ano passado (4,6% positivos). Mas a crise agora ameaça sanções mais incapacitantes na área de trocas comerciais e financeiras, o que já coloca a previsão de crescimento de 2022 na casa dos 2,4% em dúvida.

A desvalorização do rublo também impacta, em especial nas classes médias afluentes de Moscou e São Petersburgo. Cafés e restaurantes ainda estão cheios, mas os preços são objeto de queixas universais —pratos que saíam ao equivalente a R$ 50 antes da inflacionada Copa agora estão a R$ 80 em lugares moderninhos, distantes da alta gastronomia.

Putin logrou blindar razoavelmente sua economia do impacto de sanções, e tem o quarto maior colchão de reservas cambiais do mundo, US$ 640 bilhões. Mas, apesar de relativa diversificação de sua economia, ainda depende muito da exportação de hidrocarbonetos —e a torneira de gasodutos para a China não substituirá a para os europeus, sob pressão americana para fechá-la, no horizonte visível.

Por toda questão de imagem de uma Rússia forte resgatada pelo presidente, ao fim do dia o que vale é o vaticínio-clichê do marqueteiro James Carville na campanha democrata de 1992 nos EUA ("É a economia, estúpido").

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