Descrição de chapéu Rússia

Entenda a crise que opõe a Rússia de Putin ao Ocidente na Ucrânia

Delegações americanas e russas irão discutir ameaça militar de Moscou nesta segunda

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São Paulo

Quando as delegações diplomáticas da Rússia e dos Estados Unidos sentarem-se à mesa em Genebra, nesta segunda (10), duas décadas de política de Vladimir Putin estarão em jogo.

O presidente da Rússia, que assumiu sobre as ruínas dos dez anos de crise após o fim da União Soviética, trabalhou um plano geopolítico claro.

Críticos o acusam de buscar restaurar o império comunista, mas suas preocupações são as mesmas de governantes do maior país do mundo desde tempos imperiais: aumentar a distância entre seu território e os adversários, perdida quando a união caiu, em 1991.

Forças de reserva ucranianas treinam no Natal de 2021 para a defesa de Kiev contra invasão russa
Forças de reserva ucranianas treinam no Natal de 2021 para a defesa de Kiev contra invasão russa - Serguei Supinski - 25.dez.2021/AFP

Há outros pontos, como a proteção de russos étnicos que ficaram para trás, e a manutenção da popularidade, que tem na ideia de uma Rússia forte um de seus pilares. O adversário, claro, é a Otan, liderada pelos vencedores da Guerra Fria, os EUA.

Passadas três décadas, o Ocidente se vê encurralado pelos russos na Ucrânia, uma crise que Putin tenta resolver com um xeque-mate —ou um ippon, para ficar no judô que aprecia. A seguir, a Folha tentará resumir em um questionário o caminho que trouxe os dois países com os maiores arsenais nucleares do mundo frente a frente, novamente.

O que está acontecendo na Ucrânia agora? No começo de novembro, Putin deslocou mais de 100 mil soldados e equipamentos para áreas próximas, relativamente, da Ucrânia. O vizinho, os EUA e a Otan o acusaram de planejar uma invasão militar, que ele nega.

Mas o que existe lá que interessa a Putin? Em 2014, o governo pró-Rússia de Kiev foi derrubado (golpe ou revolução, depende de quem conta). Putin percebeu que a Otan e a União Europeia poderiam absorver o vizinho e agiu, promovendo a anexação da Crimeia, um território étnico russo que havia sido cedido à Ucrânia nos tempos soviéticos, em 1954. E fomentou uma guerra civil de separatistas pró-Kremlin na região do Donbass, leste da Ucrânia, que está no centro da confusão agora.

A ONU disse o quê? Ela não reconhece a Crimeia russa.

Alguém reconhece? Apenas oito aliados do Kremlin. Mas, na prática, a anexação é vista como um fato consumado na comunidade diplomática.

E as áreas autônomas? Aqui a coisa complica. Primeiro, porque elas não são tão homogêneas etnicamente; segundo, porque Putin não jogou todo seu peso militar para apoiar de forma decisiva os rebeldes.

Mas isso não o interessava? Anexar o Donbass seria muito mais complexo e caro, além de ter evidente custo militar e humano. A prioridade de Putin é outra: evitar que a Ucrânia, ou qualquer outro país ex-soviético, entre na Otan e, de forma talvez mais secundária, na União Europeia.

Por quê? Historicamente, os russos têm o seu flanco mais vulnerável no Leste Europeu. Por isso, tanto o Império Russo quanto a União Soviética ou dominavam ou tinham aliados na região. O ocaso soviético fez com que parte desses países fosse absorvida na esfera ocidental, e em 2004 a expansão da Otan chegou a três repúblicas que eram da união: Estônia, Letônia e Lituânia. Isso foi a gota d’água para Putin, no poder desde o fim de 1999.

Mas isso não seria uma questão dos países? Sim, é o que diz o direito internacional e a lógica ocidental, quando lhe interessa. Politicamente, contudo, os EUA se comportaram como vencedores pouco magnânimos da Guerra Fria, perdendo a oportunidade de atrair a Rússia para uma parceria mais estável com seus aliados europeus.

E então Putin agiu. Ele primeiro travou uma guerra em 2008 na Geórgia, um país pequeno numa região explosiva, o Cáucaso, que é uma das rotas históricas de invasões e guerras —no caso, contra a Turquia. Nos dias de hoje, o problema lá é a infiltração de radicais islâmicos, como as duas guerras que Moscou lutou na Tchetchênia, que faz parte de seu território, demonstraram.

No caso georgiano, o então presidente do país tinha uma atitude agressiva e foi visto como imprudente ao provocar os russos, dando a desculpa para que eles atacassem em nome da minoria étnica que povoa duas áreas do país. Resultado, hoje a Geórgia não controla 20% de seu território, o que na prática impede que ela se una à Otan.

Que é exatamente o que Putin queria. Sim, e é o motivo pelo qual ele é visto como um vilão no Ocidente, pelo uso de força bruta quando acha necessário. O passo seguinte foi a série de ações na Ucrânia, em 2014.

E as sanções ocidentais tiveram efeito? Há uma pressão sobre a Rússia, mas especialistas se dividem sobre o real impacto porque a resultante das sanções foi um incremento no mercado interno, o maior descolamento do sistema financeiro internacional e uma certa diversificação da economia, que ainda é dependente da exportação de hidrocarbonetos (petróleo e gás).

E a Europa segue comprando gás russo. O gasoduto Nord Stream 2, completado no ano passado, permitirá quando a Alemanha liberar sua operação à Rússia retirar boa parte do trânsito do gás natural que vende aos europeus por meio de velhas linhas que passam pela Ucrânia. Com isso, Kiev pode perder boa parte dos US$ 2 bilhões anuais que aufere em taxas. O Nord Stream 2 e seu irmão em operação, o ramal 1, ligam Rússia à Alemanha pelo mar Báltico. Hoje, 40% do gás que a Europa consome vem de Putin, e os EUA lutam para inviabilizar o gasoduto porque consideram que os europeus fazem jogo duplo.

Por que a Ucrânia não entrou na Otan e na UE? Pelo mesmo motivo da Geórgia: as regras dos clubes não permitem países com conflitos territoriais ativos. Isso torna conveniente o discurso ocidental, já que ninguém quer pagar para ver em um confronto direto com a Rússia. Assim, Kiev recebe apoio e algum armamento da Otan, mas não se espera tropas em sua defesa.

E o que acontece agora?Putin quer ver implementados os Acordos de Minsk 2, de 2015, que congelaram a guerra civil no Donbass. Só que eles preveem um grau de autonomia às áreas russas que Kiev não aceita. Ao deslocar suas tropas, insinua que pode usar a força como em 2014, o que alguns acham ser blefe.

Por quê? Porque o Exército ucraniano não pode derrotar o russo, mas causar um bom estrago. E uma invasão implicaria anexação de áreas, o que custa bilhões de que Putin não dispõe. Isso fora o risco de a Otan mudar de ideia e defender Kiev, o que arriscaria uma escalada perigosa, talvez nuclear. Não por acaso, as cinco potências atômicas se comprometeram recentemente a nunca iniciar uma guerra com essas armas.

O que será negociado? Russos e americanos devem discutir nessa semana os termos apresentados por Putin para pacificar a região. Ele "trucou", pedindo compromisso do fim da expansão da Otan e retirada de forças da aliança de membros que entraram depois de 1997, ou seja, todo o bloco que era comunista. Isso não será aceito, mas poderá haver concessões pontuais e o reinício de negociações sobre a Ucrânia, o que já será vendido em Moscou como uma vitória do líder.

Se não der certo, pode haver guerra? Não é o cenário mais provável, mas o risco é real.

E a crise no Cazaquistão, como se encaixa nisso? Há duas teorias sobre o fato de protestos legítimos contra aumento de combustível terem virado uma quase revolução, com gente armada nas ruas. Primeiro, que foi fomentada pelo Ocidente para enfraquecer Putin. Segundo, que foi obra do Kremlin para, resolvida rapidamente, o colocar em posição de força. Seja o que for, ou nada disso, a chance de Putin sair fortalecido do episódio, como pacificador da Ásia Central, é bem grande.

Há outras implicações? A crise aproximou ainda mais a Rússia da China, que deu apoio a Putin e disse que ambos os países precisam se defender juntos do Ocidente. É uma tendência que já estava colocada, mas que pode ter efeitos no futuro próximo.

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