Rússia instaura censura à cobertura da guerra na Ucrânia; Facebook e Twitter são bloqueados

Lei prevê 15 anos de cadeia por fake news na visão do governo; BBC e Bloomberg suspendem operação, e jornal retira conteúdos

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São Paulo

A Rússia instaurou a censura militar na prática à imprensa operando no país. A Duma, Câmara baixa do Parlamento, aprovou nesta sexta-feira (4) uma lei que prevê até 15 anos de prisão a jornalistas que divulgarem o que o governo considerar fake news sobre a guerra na Ucrânia. Em seguida, foi sancionada pelo presidente Vladimir Putin.

Além disso, o Facebook e o Twitter foram bloqueados de vez no país, após dias de limitação de acesso, e outras redes sociais que mantiveram conteúdos considerados antiguerra pelo Kremlin deverão seguir a mesma rota.

Manifestante contrária à guerra é levada pela polícia perto do Kremlin, no centro de Moscou
Manifestante contrária à guerra é levada pela polícia perto do Kremlin, no centro de Moscou - AFP - 3.mar.2022

A rede britânica BBC, que teve o acesso a seu site restrito pelo governo russo devido à cobertura crítica do conflito, anunciou a suspensão de sua operação na Rússia em razão do risco de prisão de seus profissionais. "A segurança do pessoal está acima de tudo, e não estamos preparados para expô-los ao risco de ação criminal só por fazerem o seu trabalho. Nosso jornalistas na Ucrânia e em todo o mundo continuarão a reportar a invasão", afirmou em comunicado Tim Davie, diretor-geral da rede.

Na sequência, a agência de notícias americana Bloomberg, a espanhola Efe e a emissora italiana RAI seguiram o mesmo caminho, enquanto a CNN Internacional anunciou que parou sua transmissão no país. Já o jornal independente Novaia Gazeta (novo jornal), editado pelo coganhador do Nobel da Paz de 2021 Dmitri Muratov, publicou em suas redes que iria retirar todo o conteúdo relacionado à ação de Putin.

"A censura militar na Rússia evoluiu para a ameaça de processo criminal contra jornalistas e cidadãos que divulgam informações sobre as hostilidades que difiram dos comunicados de imprensa do Ministério da Defesa. Portanto, removeremos materiais sobre este tópico", afirma o texto.

Trata-se de uma situação inédita na era das notícias instantâneas e interconectadas em que vivemos, mas nem de longe incomum para um país em guerra. Todos os conflitos desde que a imprensa passou a cobri-los, a partir da Guerra da Crimeia perdida pelos russos em 1856, foram objeto de censura de governos.

Isso independentemente da coloração dos regimes que a aplicam. Com o estouro da Primeira Guerra Mundial, em 1914, alguém que espalhasse as fake news da época poderia pegar até prisão perpétua no mais democrático Reino Unido, entre outras sanções, quanto na autocrática Alemanha imperial.

Na Segunda Guerra, uma das primeiras medidas após o ataque japonês a Pearl Harbor jogar os EUA no conflito, em 1941, foi o estabelecimento do Escritório de Censura. Aqui, contudo, a imprensa, de forma geral, regulou-se sozinha e em consonância com o governo, sem atritos que vemos agora na Rússia.

Os exemplos se espalham pelo mundo. A novidade em questão é que existe um resto de mídia crítica ao Kremlin na Rússia e que estamos em 2022, com uma geração de consumidores acostumada ao acesso ilimitado ao que desejam, seja de boa ou má qualidade, por meio das telas de seus celulares.

Debate acadêmico à parte, a vida dos jornalistas russos está bastante complicada. A Folha voltou a falar com Ivan (nome fictício), que trabalhou para veículos como a Novaia Gazeta. Há dois dias, ele dizia estar apavorado com a perspectiva de a lei ser aprovada. Agora, afirma que vai deixar o país.

O torniquete vem sendo apertado ao longo das duas décadas de Putin. Em seu primeiro mandato (2000-04), tratou de controlar aos poucos as TVs abertas, maior fonte de informação do russo médio.

Dali em diante, foi restringindo o trabalho dos jornais impressos, que foram abandonando linhas editoriais independentes ao longo dos anos. Mesmo a Novaia Gazeta só garantia a sua pelos bons contatos de Muratov na elite putinista, que o tinham como um verniz de liberdade intelectual no sistema.

A partir de 2012, após as primeiras grandes manifestações por mais uma eleição de Putin, uma lei criou a figura do agente estrangeiro para identificar veículos, ONGs e pessoas com financiamento externo. Eles passaram a ser sujeitos a um regime draconiano de fiscalização que impediu muitos de trabalhar.

A guerra finalizou o processo. Primeiro, a agência reguladora de comunicações russa determinou que a guerra deveria ser chamada só de "operação militar especial", não pelo seu nome ou por variantes como invasão ou agressão, o que tirou do ar a tradicional rádio Eco de Moscou, que fechou depois as portas, e a TV Chuva, que suspendeu operações.

Todos deverão voltar de uma forma ou de outra, em encarnações virtuais fora da Rússia. Mas a degradação do acesso a sites, algo que Moscou faz muito bem, parece garantir que elas fiquem fora do "mainstream" do país ao menos durante o conflito.

"A partir de amanhã, a lei vai forçar uma punição muito dura sobre aqueles que mentem e fazem declarações que desacreditam nossas Forças Armadas", disse o presidente da Duma, Viacheslav Volodin. Além das fake news oficiais, também são proibidos comentários pedindo mais sanções à Rússia.

Ainda é incerto o impacto da decisão no movimento que se formava contra a guerra, unindo celebridades e intelectuais do país. Nas ruas, o ritmo segue o mesmo: os poucos que desafiam a proibição de atos sem autorização prévia acabam detidos, por algumas horas, pela polícia. Já foram, desde o começo do conflito, 8.237 pessoas, segundo a ONG OVD-Info, ela mesma uma agente estrangeira na visão do Kremlin.

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