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Nobel da Paz para jornalista russo joga luz sobre cerco à mídia e foge de armadilha

Se prêmio fosse para opositor Alexei Navalni, como foi especulado, comitê abriria flanco para críticas

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São Paulo

Ao premiar o veterano jornalista Dmitri Muratov, 59, com o Prêmio Nobel da Paz, o Comitê Norueguês ao mesmo tempo joga luz sobre o cerco à mídia promovido por Vladimir Putin e escapa de uma armadilha.

Muratov, editor-chefe do último jornal impresso independente do país, o Novaia Gazeta (novo jornal, em russo), recebeu a distinção nesta sexta (8) ao lado da jornalista filipina Maria Ressa por sua defesa da liberdade de expressão.

Na véspera de ganhar o Nobel, Muratov (de barba) fala sobre a prescrição da apuração da morte de Anna Politkovskaia junto a monumento à repórter no prédio de seu jornal
Na véspera de ganhar o Nobel, Muratov (de barba) fala sobre a prescrição da apuração da morte de Anna Politkovskaia junto a monumento à repórter no prédio de seu jornal - Natalia Kolesnikova - 7.out.2021/AFP

Começando pelo fim: se o laureado russo fosse, como muitos apostavam, o ativista Alexei Navalni, o novo detentor do prestigioso prêmio seria um homem que já sugeriu o extermínio de muçulmanos e os comparou a baratas, defende o uso de armas, xinga gays e, vestido de dentista, pregou a expulsão de imigrantes de seu país como quem trata de uma cárie.

Claro, ele também é o símbolo mais visível da repressão às liberdades individuais no maior país do mundo, vítima de uma tentativa de assassinato por envenenamento e preso em um processo francamente arbitrário. Mas o flanco para críticas vindas do Kremlin estaria aberto.

A Anistia Internacional se viu diante do dilema e retirou, em fevereiro, o status de "prisioneiro de consciência" de Navalni. Pressionada, voltou atrás com uma desculpa tortuosa de que ele poderia se retratar, o que nunca ocorreu, e devolveu a classificação a ele em maio.

Não seria novidade a polêmica no Nobel, dada a opacidade dos critérios para a concessão do prêmio, que já foi dado em 1973 ao promotor da Guerra do Vietnã Henry Kissinger e em 2009 a um Barack Obama que tinha 11 dias como presidente dos EUA quando o prazo das inscrições acabou.

Há, naturalmente, política. Putin é o vilão predileto do Ocidente, embora o chinês Xi Jinping esteja chegando lá. As sensibilidades escandinavas, dado que a região era vista como rota de passagem para uma invasão soviética na Guerra Fria, são ainda mais agudas em relação ao longevo presidente russo.

Isso não tira o merecimento de Muratov e a nobreza da causa. O grau de repressão ao dissenso na Rússia subiu muito nos últimos anos, chegando ao paroxismo neste 2021.

A Novaia Gazeta sobrevive miraculosamente nesse ambiente, e não sem justiça poética: os primeiros computadores do jornal, que hoje ficam expostos em gabinetes de vidro em sua entrada, foram doados pelo último líder soviético, Mikhail Gorbatchov, com o dinheiro que recebeu pelo Prêmio Nobel da Paz de 1990.

Gorbatchov detém 10% da publicação. Segundo Roman Schleinov, que foi o chefe da unidade de reportagens investigativas do jornal nos anos 2000, ele nunca participou de decisões editoriais, mas volta e meia passava pela Redação para apoiar os repórteres.

Schleinov, hoje um jornalista independente que apura casos de corrupção, trabalhou com Anna Politkovskaia, a mais famosa vítima da violência contra a mídia na Rússia de Putin.

Crítica ácida do governo e de sua condução no controle da Tchetchênia, onde o Kremlin lutou duas sangrentas guerras, ela foi morta a tiros em 2006. Cinco tchetchenos foram condenados num julgamento considerado por Muratov como fraudulento, e na quinta (7), aniversário da morte da repórter, ele criticou a prescrição final do caso, impedindo novas investigações.

O Kremlin nega participação nesta e em outras cinco mortes de profissionais ligados ao jornal de Muratov. No caso de Politkovskaia, é até provável que sua morte tenha a ver com os interesses contrariados de aliados de Putin no Cáucaso, mas o que interessa no geral é o clima repressivo para a atividade no país.

Ele só piorou, curiosamente com um decréscimo no número de jornalistas mortos, segundo contagem do Comitê para Proteção de Jornalistas —que assinala a maior parte das 58 mortes de profissionais do ramo desde 1993 nos anos 1990 e 2000.

O que não significa refresco. A partir de 2017 explodiu o número de repórteres e editores presos por acusações diversas, como Ivan Gulonov, que contou à Folha em 2019 seu périplo na cadeia sob a acusação falsa de posse de drogas.

De 1993 a 2017, 21 jornalistas haviam sido presos no país que Putin lidera desde agosto de 1999, quando virou premiê pela primeira vez. De lá para cá, foram 27.

Um dos principais instrumentos repressores da atividade jornalística é uma lei de 2012 que define como "agente estrangeiro" qualquer indivíduo, órgão de mídia ou ONG que receba financiamento externo.

Assim, o alvo passa a ser escrutinado com regras tributárias draconianas, que usualmente levam ao seu fechamento. Com uma nova leva anunciada após a outorga do Nobel, há 59 pessoas e empresas nessa condição —praticamente toda a mídia independente, como o site Meduza ou a TV Dojd (chuva), que sobrevivem precariamente.

A Novaia Gazeta, por seu controle russo, por ora escapou. Com a intervenção do Kremlin no diário econômico Vedomosti, a publicação está sozinha no campo abertamente adversário de Putin no país. Circula cerca de 90 mil exemplares, três vezes por semana.

O meio dominante no país, a TV aberta, é estatal.

O presidente russo costuma apontar a crítica na mídia como parte da guerra política travada pelo Ocidente contra seu regime, um processo de resto que não tem um só culpado e evoluiu ao longo dos anos.

Mas sua indisposição com o jornalismo remonta ao início de seu primeiro mandato como presidente, em 2000, quando interveio no canal oposicionista NTV —tirando do ar o popular humorístico Kukli (bonecos), no qual estrelava como uma marionete ridicularizada.

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