Controvérsias com Israel espelham questões ideológicas da guerra de Putin na Ucrânia

Declarações sobre 'Hitler judeu' exibem crescente antissemitismo no país de Vladimir Putin

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Não é preciso ir longe no cenário político-social de Israel para encontrar algo que ligue o país às nações hoje em guerra. Natan Sharanski, espécie de ícone dos direitos humanos, ex-ministro e por nove anos chefe da Agência Judaica, nasceu em Donetsk, na região do Donbass, no leste da Ucrânia.

O atual ministro das Finanças, Avigdor Lieberman, nasceu na Moldova, a pequena vizinha ucraniana que também esteve no guarda-chuva da União Soviética, e fundou o Yisrael Beiteinu, partido de ultradireita que por anos foi visto como reduto político de imigrantes de língua russa. Evgueni Sova, membro do Knesset —o Parlamento de Israel— pela mesma sigla, nasceu em Pervomaisk, 300 quilômetros ao sul de Kiev.

O ativista de direitos humanos e dissidente soviético Natan Sharanski, em Jerusalém
O ativista de direitos humanos e dissidente soviético Natan Sharanski, em Jerusalém - Corinna Kern - 17.jun.18/The New York Times

O papel político desempenhado por israelenses de língua russa reflete a onda de migração das ex-repúblicas soviéticas para o Estado de Israel nos anos 1980 e 1990. Dos 9,2 milhões de habitantes do país, 13% seriam egressos dessas nações —um terço oriundo do território hoje correspondente à Ucrânia.

Um movimento que, de acordo com os últimos números, não cessou. Dos 27 mil imigrantes que Israel recebeu ao longo do ano passado, 28% eram da Rússia, a maior fatia —outros 11% eram da Ucrânia.

​"A imigração dos anos 1980 e 1990 é a da Cortina de Ferro, quando as pessoas fugiam por liberdade, e Israel é uma alternativa devido à identidade judaica e à cidadania imediata", afirma Michel Gherman, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ. "Hoje se dá por uma sensação de necessidade de fuga, com Putin tomando posicionamentos autocráticos cada vez mais claros."

Especialistas afirmam que o capital social da fatia da população descendente de russos tem peso porque dialoga com a memória e a identidade israelenses. "Israel é um país fundado em uma especificidade étnica e religiosa muito grande", diz Tanguy Baghdadi, mestre em relações internacionais.

A presença massiva de egressos da Rússia ou da órbita de Moscou, ainda que não explique por completo a abordagem cautelosa que o premiê Naftali Bennett empregou desde o início da Guerra da Ucrânia, ajuda a entendê-la. O líder israelense tentou se colocar como mediador do conflito e criticou a invasão, mas não impôs sanções e tampouco desferiu críticas frequentes às autoridades russas.

A postura também é moldada, claro, por elementos geopolíticos, e o principal deles está na fronteira norte do país: a Síria. Principal agente externo da guerra civil e aliada do ditador Bashar al-Assad, a Rússia de Putin atua como intermediário de Israel, num acordo não escrito, para que Tel Aviv possa conter o avanço em sua vizinhança de grupos apoiados pelo Irã, como o Hizbullah.

A importância desse fator foi expressa pelo próprio governo. No quarto dia da invasão russa, a chancelaria de Israel disse que tinha a "obrigação moral, histórica e ética de apoiar a Ucrânia", mas logo citou que um grupo de trabalho já estudava as possíveis implicações para as relações russo-israelenses.

"Israel tem efetivamente uma fronteira de segurança com a Rússia, que é a potência militar mais importante na Síria, e nosso mecanismo de cooperação com eles auxilia em nossa batalha contra o entrincheiramento iraniano em nossa fronteira norte", disse em nota o Ministério das Relações Exteriores.​

A figura de Natan Sharanski, o político e ativista pelos direitos humanos, ajuda a entender o passado em comum. O ucraniano ficou nove anos preso em um campo soviético de trabalho forçado na Sibéria, acusado de espionagem para os EUA, até que em 1986 foi libertado em uma troca de prisioneiros e passou a viver em Israel. Ele é um duro crítico da atual invasão capitaneada por Vladimir Putin.

Um dos posicionamentos mais críticos de Israel foi dado após as cenas de centenas de corpos nas ruas da cidade de Butcha surgirem após a saída das tropas russas. À época, o chanceler Yair Lapid, que em breve pode se tornar premiê por meio de um acordo da coalizão governante, disse ser "impossível permanecer indiferente". "Ferir intencionalmente a população civil é um crime de guerra", afirmou.

"O tema da cova coletiva mexe bastante com o imaginário da sociedade israelense. Por isso Israel reagiu mais duramente", diz Gherman, também assessor do Instituto Brasil-Israel.

O ex-dissidente soviético Natan Sharansky, então ministro em Israel, durante visita à prisão na Sibéria onde ficou acusado de trair Moscou
O ex-dissidente soviético Natan Sharansky, então ministro em Israel, durante visita à prisão na Sibéria onde ficou acusado de trair Moscou - Alexander Natruskin/Reuters

O historiador diz que as querelas diplomáticas com Israel na guerra também ajudam a compreender o crescente antissemitismo na Rússia. O principal episódio ocorreu neste mês, quando a relação entre os países se esgarçou depois de o chanceler Serguei Lavrov dizer que "Hitler também tinha origens judaicas" e que "há muito tempo o povo judeu afirma que os maiores antissemitas são os próprios judeus".​

Lavrov não foi o único membro da diplomacia russa a fazer comentários do tipo. Pouco depois, uma porta-voz da chancelaria disse à agência de notícias estatal Sputnik que mercenários israelenses estariam combatendo ao lado do batalhão Azov, grupo neonazista parcialmente incorporado às Forças Armadas da Ucrânia. Israel condenou enfaticamente as declarações.

A primeira parte da fala de Lavrov, afirma Gherman, resgata o pensamento antissionista soviético da era de Stálin. "É uma ideia de conspiração judaica, como se o judeu estivesse nos dois lados da guerra."

O segundo elemento, do "judeu antissemita", é mais recente. "Dialoga com a perspectiva de Aleksandr Dugin [filósofo e guru de radicais russos, visto como ideólogo da expansão do país], mais contemporânea, de que há o judeu do bem e do mal; o da visão eurasiana e o da visão europeia."

Assim, acrescenta o professor, o episódio ajuda a elucidar as dimensões ideológicas da guerra travada por Putin no Leste Europeu. Israel, aliás, disse que o presidente russo pediu desculpas pelas declarações de seu chanceler. O Kremlin não confirmou a afirmação até hoje.

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