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Diogo Schelp

Planos de Petro em nada garantem que acordo de paz na Colômbia resulte em paz

Difícil implantação do acordo de paz assinado com as Farc é questão crucial para a estabilidade local

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Diogo Schelp

Jornalista e comentarista político, foi editor-executivo da Veja. É pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP

São Paulo

​Uma eleição presidencial polarizada, em que os favoritos para chegar ao segundo turno são um esquerdista que já chamou o adversário de fascista e um direitista que acusa o outro de querer instaurar o comunismo no país, tudo isso em um contexto de ameaças de violência contra os candidatos e em meio à tentação de integrantes das Forças Armadas de interferir no processo político.

Parece familiar? De fato é, mas não estamos falando do Brasil, e sim da Colômbia, que realiza neste domingo (29) o primeiro turno para a escolha do próximo presidente.

Para quem enxerga na descrição acima um cenário de eleições conturbadas, acrescente como pano de fundo um país que tenta sair de um conflito armado com mais de cinco décadas de duração que já matou 260 mil pessoas, expulsou outros 5 milhões de suas casas ou terras e transformou guerrilheiros de orientação marxista em narcotraficantes e soldados em paramilitares mafiosos.

Apesar de não ser o tema mais discutido nos debates presidenciais, destaque dado às altas taxas de desemprego e de inflação, a difícil implantação do acordo de paz assinado pelo governo colombiano em 2016 com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), principal grupo narcoguerrilheiro do país, é uma questão crucial para a estabilidade local.

Soldados que atuarão na segurança do dia da eleição em formação na base do Exército em Bogotá
Soldados que atuarão na segurança do dia da eleição em formação na base do Exército em Bogotá - Daniel Muñoz - 27.mai.22/AFP

Prova disso é a própria campanha eleitoral deste ano. Tanto o candidato de esquerda, Gustavo Petro, como o representante da direita, Federico "Fico" Gutiérrez, sofreram ameaças de morte por parte de cartéis de drogas e grupos paramilitares. A Colômbia tem um longo histórico de candidatos e políticos assassinados ou vítimas de atentados.

Essas organizações criminosas cresceram e se fortaleceram no vácuo deixado pelos integrantes das Farc que depuseram as armas a partir de 2016. Também permanecem em atividade os narcoguerrilheiros do Exército de Libertação Nacional (ELN), que não aderiu ao acordo de paz, e dissidentes das Farc.

E, como ocorre com muitos colombianos, a vida de cada candidato conta também parte da história do ciclo interminável de violência no país. É o caso do populista Rodolfo Hernández, que nas últimas semanas encostou em terceiro lugar nas pesquisas em Fico Gutiérrez, com chance real de tirá-lo do segundo turno. Empresário e ex-prefeito de Bucaramanga, Hernández pagou resgate em 1994 para libertar seu pai, que havia sido sequestrado pelas Farc. Dez anos depois, sua filha Juliana, 23, foi levada pelo ELN e nunca mais encontrada. Hernández levou anos para se conformar de que estava morta.

A biografia de Petro, com folga o líder nas pesquisas com cerca de 40% das intenções de voto, tem sido um prato cheio para que Fico, o segundo colocado com 27%, o acuse de ser "aliado" e "amigo" das Farc, de ter defendido seus líderes e de não pretender cobrar deles o cumprimento integral de sua parte no acordo de paz, como o pagamento de reparação para as vítimas e a deposição completa das armas.

Petro é um ex-integrante do M-19, grupo de guerrilha urbana que atuou na Colômbia nos anos 1970 e 1980 e que protagonizou um dos episódios mais sangrentos já vistos em Bogotá: o ataque ao Palácio de Justiça, no qual os guerrilheiros mantiveram 350 reféns por dois dias e que foi encerrado por uma operação militar com 98 mortos e 11 desaparecidos. Petro não participou da ação porque estava preso por porte ilegal de armas. Em 1990, o M-19 fechou um acordo para encerrar a luta armada e muitos de seus integrantes, inclusive o hoje candidato, seguiram carreira política.

Desde então ele defende que processo semelhante de integração ao establishment político mediante a deposição das armas também seja negociado com grupos de atuação rural como as Farc e o ELN.

Na atual campanha, prometeu cumprir integralmente o acordo de paz negociado e firmado em 2016 pelo então presidente Juan Manuel Santos, com ênfase nos compromissos assumidos pelo Estado, como a reforma agrária e os projetos de desenvolvimento das regiões remotas antes sob domínio das guerrilhas.

Ele planeja também dar mais garantias e segurança aos ex-guerrilheiros, que continuam sendo alvo de velhos inimigos (traficantes concorrentes e paramilitares) ou mesmo de antigos comparsas. Segundo o Indepaz, uma ONG colombiana, desde o início deste ano 21 ex-membros das Farc foram assassinados no país, além de 77 líderes comunitários e defensores dos direitos humanos. Petro também diz estar pronto para voltar a negociar com o ELN, grupo que mantém cerca de 2.500 homens e mulheres armados.

Fico Gutiérrez igualmente promete cumprir o acordo de paz, mas seu foco é cobrar das Farc a deposição de todas as armas, processo que segundo ele só foi realizado pela metade, a entrega de bens adquiridos com recursos do narcotráfico, dos sequestros e das extorsões e o pagamento de reparação a suas vítimas. Fico não fala em negociar com o ELN e afirma ser necessário combater duramente os grupos dissidentes e os paramilitares que não se desmobilizaram.

Outra diferença entre os favoritos para chegar ao segundo turno é a postura em relação à guerra contra as drogas. Petro diz que a estratégia de repressão ao narcotráfico, intimamente ligado ao problema do conflito armado, não funcionou, visto que a produção de coca no país aumentou nas últimas três décadas. Ele propõe "regular" parte do cultivo, o que pressupõe a exploração legalizada de produtos "derivados" da coca, algo semelhante ao "uso tradicional" existente na Bolívia, e substituir o restante por outras culturas.

Fico também defende o fortalecimento de programas para incentivar a substituição do cultivo de coca por outras plantas, mas promete continuar com a política de destruição de plantações ilegais por meio da aspersão de herbicidas. Petro é contra essa medida e diz que não se pode "criminalizar os produtores".

Já o programa do azarão Hernández para o processo de paz se assemelha mais ao de Petro. Ele quer incluir o ELN no acordo de paz estabelecido com as Farc, sem a necessidade de iniciar uma nova negociação do zero. Quanto ao narcotráfico, defende a substituição das plantações de coca por maconha, que segundo ele deveria ser legalizada.

O complexo acordo de paz colombiano previu o cumprimento de etapas em um prazo de 15 anos, dos quais cinco já se passaram. Pouco se avançou no atual governo de Iván Duque, em outros motivos pelas dificuldades impostas pela pandemia. Parte do sucesso em forçar as Farc para a mesa de negociações é atribuído às ações militares implacáveis contra seus líderes e suas fontes de financiamento, inclusive o narcotráfico, nos anos anteriores. Os planos de Petro de atuar com mão mais leve contra as atividades criminosas em nada garante que o acordo de paz de fato resulte em paz para a Colômbia.

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