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Primeiro turno foi histórico ao afundar establishment colombiano, diz Samper

Ex-presidente não vê Hernández como político com formação ideológica, mas descarta elos do candidato com a esquerda

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Bogotá

"Não se deve confundir filantropismo populista com esquerda", diz o ex-líder colombiano Ernesto Samper, 71, ao discorrer sobre Rodolfo Hernández, que de modo surpreendente passou para o segundo turno da eleição presidencial para enfrentar Gustavo Petro, de esquerda, em 19 de junho.

Apesar de não ter feito um governo de esquerda, Samper vem se aproximando cada vez mais desse campo ideológico —ele faz parte do Grupo de Puebla, que reúne líderes progressistas latino-americanos. "Minha gestão foi liberal progressista, seguindo a linha social-democrata europeia", afirma.

Nesta semana, ele iniciou uma campanha para angariar apoios a Petro. Para tal, convidou, por exemplo, o também ex-presidente César Gaviria, líder do Partido Liberal. Ex-secretário-geral da Unasul, Samper considera o resultado do primeiro turno histórico por "afundar o establishment colombiano".

O ex-presidente Ernesto Samper durante entrevista coletiva em Quito, no Equador
O ex-presidente Ernesto Samper durante entrevista coletiva em Quito, no Equador - Rodrigo Buendia - 1º.nov.16/AFP

Como o sr. avalia o resultado do primeiro turno? Foi um episódio histórico, porque afundou o establishment político colombiano. A candidatura de Federico "Fico" Gutiérrez tinha o apoio de quase toda a classe política tradicional: três ex-presidentes, quatro partidos, entre os quais os mais tradicionais, o Liberal e o Conservador, além do atual governo, da Procuradoria e de toda a máquina de propaganda que essas forças possuem. Ou seja, foi uma derrota enorme para quem apostou em Fico no bolão [risos].

Agora, essa derrota também poderia acontecer num segundo turno entre Petro e Fico. Mas não, ela se adiantou, com a chegada de Rodolfo Hernández. Se somarmos os votos dos dois finalistas, veremos que quase 70% da população votou contra o establishment. Isso é muito significativo.

O que vem adiante para a Colômbia, ao dar esse sinal de rejeição tão grande ao establishment? Uma situação complicada de reorganização do poder. Os dois no fundo não se diferenciam tanto no sentido de apontar para uma mudança. O projeto de Petro, porém, é mais real, consistente. Também não é um projeto de um homem, mas de um grupo, da esquerda colombiana, que está jogando suas cartas nessa eleição como nunca antes.

Por outro lado, já estamos vendo que Hernández vai acabar atraindo a maior parte da direita tradicional, que rejeita Petro. Esperávamos uma polarização entre algo sólido e algo líquido, e agora temos uma polarização entre algo sólido e algo gasoso. Mudou de estado.

Como o sr. vê a figura de Hernández como fenômeno político? Eu o compararia a figuras como [o chileno José Antonio] Kast e [Jair] Bolsonaro, guardadas as peculiaridades. O sujeito já disse que admira Hitler...

Sim, mas depois pediu desculpas e disse ter se confundido, que queria dizer Einstein. Pois não sei o que é pior. Termos um admirador de Hitler ou alguém que é capaz de confundir Hitler com Einstein [risos].

Há um debate sobre se Hernández é ou não de direita. Qual é a sua opinião? Não vejo em Hernández um político com formação ideológica, mas alguém que representa alguns interesses econômicos. É um sujeito milionário, que passa a ideia de austeridade, de querer ser um protetor, alguém que fala simples, ou seja, o outsider perfeito para a situação que vivemos.

Agora, o fato de ele representar o antissistema não necessariamente se traduzirá numa posição anti-Petro. Há muitas contradições no que ele já disse, e não sabemos se é um personagem construído. Hernández no passado já fez declarações a favor de Petro. Será curioso ver como fica essa polarização, porque há coisas em comum nas duas plataformas.

Então o sr. não o vê como de direita? A direita vai apoiá-lo, mas não o vejo com um preparo político de direita. Talvez ele possa se parecer, se ganhar, com uma espécie de Bolsonaro não tão agressivo. Mas não se pode dizer que é de esquerda de nenhuma maneira. O que ele promete —e que pode ser comum com demandas da esquerda— não passa de filantropismo populista. Creio que ele vê esses temas como um empresário com consciência social. Mas não vejo alguém com ideias profundas sobre o que é o Estado. É alguém que não tem propostas bem definidas, o que ele tem são ódios estratégicos que maneja muito bem, principalmente nas redes sociais, nas quais se vê um tratamento dos temas nacionais com muita emoção. Hernández trocou a participação nos debates pelas redes sociais. E está se saindo bem até aqui.

O sr. crê que o resultado dessas eleições seja consequência dos protestos de 2019 e 2021? Os protestos influenciaram, mas não explicam tudo. O voto jovem, urbano e maciço em Petro mostra que este candidato teve o apoio dos que foram às ruas. Mas há outros fatores. Estamos saindo de 20 anos de uribismo.

Há dois elementos nesta eleição colombiana que são atípicos em relação a qualquer pleito na América Latina. Primeiro, o fato de que o acordo de paz em 2016 deu uma abertura ao eleitorado ao acabar com o estigma de que a esquerda estaria sempre relacionada à luta armada. Desvincular-se do símbolo da guerrilha fez muito bem para a esquerda democrática colombiana. Isso já ficou claro na eleição para o Congresso, em que a esquerda teve quase 30% dos votos, quando antes não chegava a 5%.

A diminuição da luta armada e a desmobilização de guerrilheiros permitiram que muitos setores sociais que hoje são representados por Francia Márquez [candidata a vice de Petro] tivessem a possibilidade de entrar em cena. O acordo abriu espaço a indígenas e a afrocolombianos, que em geral estão apoiando Petro e o [partido] Pacto Histórico. O segundo elemento é o fim da era Uribe, um personagem com teses complicadas para esse país, com um discurso de ordem, de luta antiterrorista, que passava por cima dos problemas sociais da Colômbia e dos direitos humanos. As pessoas votaram para castigar Uribe.

Por que os acordos de paz têm uma imagem tão ruim, principalmente no exterior? O sr. crê que está sendo positivo? Foi superpositivo. O que está acontecendo é que esse governo colocou o acordo de paz em modo avião, colocou o pé no freio, deixando de avançar em temas fundamentais do acordo, como a redistribuição de terras e a substituição dos cultivos de coca, cujo território até aumentou em seu período.

Assim, a ideia de que a paz estava detida se disseminou. Agora, a desmobilização de 13 mil guerrilheiros não é pouca coisa. É um exemplo de paz que 13 mil combatentes que atuavam em 180 municípios tenham entregado suas armas e hoje estejam integrados à sociedade. Assim como tem sido um avanço a atuação do tribunal especial [JEP], com suas penas reparatórias, não punitivas. A JEP e a Comissão da Verdade estão revelando todos os capítulos do conflito e promovendo reconciliação. E o aumento da violência está ligado ao narcotráfico e ao papel que a Colômbia tem nessa rede ilegal em que há muito dinheiro em jogo. O narcotráfico financia e arma facções que provocam esses conflitos. É preciso separar isso do que de fato era o objetivo do acordo de paz com as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia].

É preciso aprofundar a implementação deste acordo e reabrir a negociação com o ELN [Exército de Libertação Nacional]. E ambos os candidatos prometem isso. Colocaria fim a uma violência ainda relacionada a uma ideologia. Depois o narcotráfico precisa de uma outra política específica.


Ernesto Samper, 71

Nascido em 3 de agosto de 1950, é advogado e economista. Foi presidente da Colômbia (1994-1998), senador (1986-1990) e secretário-geral da Unasul, a União de Nações Sul-Americanas (2014-2019).

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