Rússia se tornou novo norte da Ásia, diz ex-consultor do governo Obama

Indiano Parag Khanna afirma que aproximação ainda maior de Moscou com países da região foi forçada pela Guerra da Ucrânia

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​O indiano Parag Khanna, que por anos atuou como consultor de política externa do governo dos Estados Unidos, engrossa a lista dos que acreditam que a Guerra da Ucrânia poderia ter sido freada antes mesmo de começar. A península da Crimeia e o Donbass poderiam ter sido cedidos à Rússia, enquanto a Ucrânia seria prontamente aceita em blocos do Ocidente, como a Otan e a União Europeia, ele diz.

Kiev não aceita essa hipótese, mas, segundo Khanna, 44, "sem acordos territoriais, não haverá paz". Entre as consequências do conflito vigente, o especialista menciona a consolidação de Moscou como uma espécie de "norte da Ásia".

Parag Khanna durante apresentação em um TED, em Vancouver, no Canadá - Bret Hartman - 15.fev.16/TED

Sobre a principal potência da região, a China, ele afirma que o avanço do regime de Xi Jinping no Indo-Pacífico não deve alterar as feições multipolares do território asiático. Mas também acredita que, mais do que antes, coalizões como o Quad (entre EUA, Austrália, Japão e Índia) têm potencial para desbancar a influência de Pequim na região.

Sobre o Brasil, revê entrevista dada a este jornal há 14 anos afirmando que se em 2008 via falta de ambição para se tornar uma superpotência, agora diz que o país se furtou a ser um líder na diplomacia climática.

Khanna, que conversou por videochamada com a Folha de Singapura, hoje dirige a FutureMap, consultoria de estratégia baseada em dados que fundou. Ele é autor, entre outros, de "The Future is Asian" (o futuro é asiático) e do recém-lançado "Move" (movimento; ambos sem edição no Brasil), no qual aborda a migração, especialmente aquela motivada pela emergência climática.

Este foi outros dos temas abordados com o especialista em relações internacionais que, nesta terça (7), às 9h (horário de Brasília), participa de um debate virtual promovido pelo Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). Para acompanhar, é preciso se inscrever.​

Quais as principais consequências da Guerra da Ucrânia para os países asiáticos? Uma das coisas que os asiáticos entenderam e têm tirado proveito já há algum tempo é que a Rússia está se tornando um país asiático. O combustível, os alimentos e os recursos russos fluem para a Ásia, especialmente agora que a Europa quer se tornar mais autossuficiente, evitando a dependência da Rússia e impondo sanções a Moscou. A Rússia não tem outra opção a não ser exportar, importar e negociar com a Ásia: tornou-se o norte do continente, algo que já vinha acontecendo nos últimos 20 anos e foi acelerado pela guerra.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o líder da China, Xi Jinping, em Brasília (DF), durante encontro dos Brics - Ueslei Marcelino - 14.nov.19/Reuters


Num recente artigo publicado na National Interest, o sr. afirma que a Crimeia e o Donbass deveriam ter sido cedidos à Rússia e que a Ucrânia deveria ter sido aceita na UE e na Otan para evitar a guerra. O que acredita que os dois lados e o Ocidente devem fazer para interromper o conflito? Até que tenhamos um acordo territorial, não haverá paz, tampouco estabilidade. Minha opinião é a de que devemos focar esse acordo –que poderia ter sido feito em 2014, oito anos atrás, porque já era claro que a Rússia não devolveria a Crimeia e continuaria com milícias no Donbass para controlar as fronteiras.

Agora, Moscou também conquistou o corredor que liga o Donbass a Mariupol e à Crimeia, de modo que ainda tem jogo, mesmo que suas Forças Armadas tenham penado. Seria melhor se houvesse uma nova demarcação legal do território do país. Claro, isso significaria mais transferência populacional, e é humilhante para um país perder território. Mas se olharmos para o número de vítimas, de refugiados e de danos econômicos, faz mais sentido para a Ucrânia concordar com a atual realidade geográfica em vez de fingir que pode revidar e vencer.

Quais as possíveis consequências da crescente movimentação da China no Pacífico? Esse é um cenário relativo, não linear, porque a China está ficando muito mais forte e influente do que era no passado, mas os EUA também seguem muito importantes –devido à presença militar, ao investimento na região, o papel do dólar, as exportações. E a Europa também adotou uma estratégia para o Indo-Pacífico. A Ásia é multipolar e seguirá multipolar, mesmo com uma China cada vez mais poderosa e influente.

O que pensa do controverso acordo de segurança firmado com as Ilhas Salomão? Não acho que a China vá, necessariamente, ter a chance de usar essas instalações. Já vimos Pequim tentando comprar relações bilaterais ou a política de um país, como ocorreu no Sri Lanka, com o porto de Hambantota —agora, é claro, tudo minguou após o colapso do governo. Assim, não é possível ter certeza de que, daqui a cinco anos, esse acordo de segurança vai realmente beneficiar a China. Se o governo mudar, e as pessoas se voltarem contra Pequim, isso não dará em nada [as Ilhas Salomão têm eleições em 2023].


Joe Biden também parece priorizar o Pacífico. Como avalia as atuais políticas do governo americano para a Ásia? O giro para a Ásia teve início com Barack Obama, cerca de uma década atrás, mas faltavam ali estratégias militares e econômicas.

Hoje são três as diferenças. 1) Há uma estratégia econômica, acordos comerciais e esforços para afastar as cadeias de suprimentos da Ásia, para levá-las a nações amigas. 2) Do lado militar, temos o Quad [EUA, Índia, Austrália e Japão], e esses países estão determinados a manter uma colaboração de longo prazo. 3) A própria China, porque, há dez anos, muitas nações poderiam acreditar que a China seguiria numa direção positiva —hoje, ninguém confia em Pequim, todos têm suas suspeitas. Essas três coisas tornam mais provável que uma coalizão de países que desejam limitar a influência chinesa tenha sucesso.

Pode desenvolver mais essa ideia de "friend-shoring"? É quando você pega as cadeias de suprimentos até então alojadas na China e as transfere para países como Índia, Indonésia, Tailândia, Vietnã, porque são lugares muito mais confiáveis em proteção da propriedade intelectual e dos direitos dos investidores. É menor o risco de que esses países cortem suas exportações para os EUA.

Outro tema que o sr. trabalha é a mudança climática e, nesse sentido, diz que o fenômeno vai acelerar migrações Sul-Norte dentro dos países e entre eles. Quais serão as consequências? Inevitavelmente, vai haver um movimento de pessoas mudando do sul para o norte, mas a maioria das pessoas não vai se mudar, e sim buscar adaptações onde vive —o que se aplica à América do Sul, mas também à Ásia, particularmente à Índia. De um modo geral, as geografias do norte ainda estão em melhor situação, porque há mais espaço, maior abastecimento de água doce e melhor governança, o que leva a maior produtividade.

Os governos estão desenvolvendo políticas para assegurar que refugiados climáticos tenham o suporte que precisam? O principal é reduzir a burocracia, facilitando o reassentamento das pessoas e dando a elas direitos. Em segundo lugar, deve-se construir infraestrutura adequada, especialmente moradias acessíveis. E, em terceiro, assegurar emprego, para permitir que essas pessoas participem da economia.

Há 14 anos, em entrevista à Folha, o sr. disse que o Brasil não tinha ambição suficiente para se tornar uma superpotência. Como vê a diplomacia brasileira atual? O Brasil segue um país muito influente, é um ator-chave em muitos contextos. Mas não acho que seja visto como um líder na diplomacia. Porque a equação da mudança climática e da diplomacia tem sido ineficaz –na verdade, por parte de todos. Nenhum país foi um líder confiável nessas áreas. O Brasil poderia ter sido um na diplomacia climática.

Mas me dedico mais à importância material dos países e menos à retórica. Então, mesmo que o Brasil tenha perdido um pouco de credibilidade no cenário global, isso não significa que não deva focar suas relações de influência. Ele deveria continuar a priorizá-las.


raio-x | Parag Khanna, 44

Nascido na Índia, é doutor em relações internacionais pela London School of Economics e bacharel e mestre pela Universidade de Georgetown. Atuou como consultor do Conselho Nacional de Inteligência dos EUA e das Forças de Operações Especiais do país no Iraque e no Afeganistão. Fundou a consultoria FutureMap e é autor, entre outros, de "The Future is Asian" e "Move: The Forces Uprooting".

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