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Polarização política contaminou relações entre Brasil e EUA, afirma especialista

Para Britta Crandall, mudança começou com Trump e Bolsonaro; eleição de Lula seria mais segura para Washington

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Interesse Nacional

A entrevista abaixo foi publicada originalmente no site Interesse Nacional, com o qual a Folha tem parceria.

As relações bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos, que sempre foram muito marcadas pelo foco em temas de importância para os dois países, nos últimos anos passaram a ser pautadas pela politização, enfatizadas pela relação pessoal entre os líderes dos dois países. Para Britta Crandall, professora de estudos latino-americanos do Davidson College, essa transformação começou sob Donald Trump e Jair Bolsonaro e contaminou as conversas bilaterais de alto nível desde então.

Em entrevista à Interesse Nacional, Crandall analisou o atual cenário das relações entre os dois países, explicou que os EUA tradicionalmente têm negligenciado o Brasil, mas que o país tem um papel relevante nas trocas com a maior potência do mundo.

O presidente Jair Bolsonaro e o então presidente dos EUA Donald Trump durante entrevista coletiva na Casa Branca - Brendan Smialowski - 19.mar.21/AFP

Autora de livros como "Hemispheric Giants: The Misunderstood History of U.S.-Brazilian Relations" e o recente "Our Hemisphere?", a professora defende que os EUA querem que o Brasil se alinhe ao Ocidente e aos interesses americanos na atual divisão global em disputas da Otan ​com a Rússia e a China.

Segundo ela, o governo americano também está atento em relação à situação da democracia brasileira, e afirma que pode ter relações construtivas com o Brasil no caso de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições deste ano.

Como interpreta a hesitação do Brasil em ir à Cúpula das Américas deste ano? O que isso diz sobre as relações do Brasil com os EUA? A relação entre o Brasil e os EUA é obviamente complexa, e precisamos ter uma visão histórica. A crítica aos EUA tem tradicionalmente sido que há uma negligência benigna em relação à região. Acredito que essa negligência se dá não por descaso, mas pelo fato de termos esses dois países imensos que realmente só precisam interagir quando suas prioridades se cruzam. Acredito muito na importância do comportamento do Brasil como agente. Não se trata apenas de uma relação liderada pelos EUA. Essa dinâmica é bilateral.

O que é diferente agora é o quão politizado o relacionamento se tornou. É conduzido no nível mais alto pela dinâmica política entre dois líderes. Até aqui, a relação bilateral sempre foi baseada em temas e assuntos que eram relevantes para os dois países, como direitos humanos, meio ambiente, comércio exterior. Desde Trump e Bolsonaro, tornou-se um alinhamento de dois populistas de direita. Foi uma resposta bilateral personalista. Bolsonaro estava alinhado a Trump, não aos EUA e vice-versa.

Quanto a questão da democracia e as ameaças contra ela no Brasil influenciam a relação do país com os Estados Unidos? A narrativa sobre Bolsonaro nos EUA desde o princípio foi de que ele era 'Trump tropical', e o medo sempre foi de que Bolsonaro seguisse a cartilha de Trump e a usasse de maneira bastante eficaz contra a democracia0. Há uma expectativa de acusações de fraude eleitoral ou rejeição de um resultado negativo para ele. Com as eleições de outubro se aproximando, a expectativa é que Bolsonaro se apoie mais nesse tipo de método para energizar sua base. Então isso é uma preocupação real. Se tivermos uma situação em que Bolsonaro diga que a eleição foi roubada e comece a trilhar um caminho semelhante ao de Trump, isso afetará negativamente a relação bilateral.

Seu trabalho lida com uma perspectiva histórica, e quando falamos sobre democracia no Brasil sempre olhamos para 1964 e como os EUA apoiaram o golpe militar. Devemos levar a sério quando Biden fala sobre a defesa da democracia no Brasil? Biden apoia legitimamente a democracia no Brasil? Sem dúvida. Não estamos mais na Guerra Fria. Não estamos em um ambiente em que os regimes militares ofereçam qualquer benefício para os interesses geopolíticos dos EUA.

O mundo está se transformando e se dividindo em novas esferas de influência, entre a China e regimes mais autocráticos versus os EUA e a Europa Ocidental. Onde o Brasil fica nessa divisão? Os EUA se beneficiam mais se o Brasil estiver no campo democrático. A comparação com 1964 é difícil, pois não poderíamos estar em uma situação mais diferente que essa.

Se pensarmos na atual disputa brasileira entre Lula e Bolsonaro, vale lembrar que os EUA tiveram uma relação muito produtiva com Lula, apesar de ele ter adotado uma política externa brasileira de não alinhamento e independência em relação aos EUA. Isso é muito mais preferível do que o alinhamento de Bolsonaro com os EUA, que, novamente, foi apenas um alinhamento com Trump, não foi um alinhamento com as políticas dos EUA. Olhando de forma cética para os interesses dos EUA, Lula é um candidato muito mais seguro em termos de alinhamento com esses objetivos geopolíticos dos EUA do que Bolsonaro.

Com a Guerra da Ucrânia, muito tem se falado do rearranjo dos polos de poder globais, e a senhora mencionou isso ao tratar do alinhamento do Brasil com os EUA. Mas, de forma mais ampla, como o Brasil e a América Latina se encaixam nessa nova geopolítica global? A designação que Trump conferiu ao Brasil de aliado à Otan é até certo ponto simbólica, mas continuou valendo no governo Biden e também tem implicações que não são insignificantes em termos de privilégios que o Brasil teria em elegibilidade para projetos cooperativos de pesquisa e desenvolvimento. Essa é uma forma de incluir o Brasil nessa espécie de esfera de influência dos EUA.

É difícil pensar no longo prazo porque estamos até o início de outubro em um período em que simplesmente não sabemos o que vai acontecer, pois temos dois cenários muito diferentes sobre o futuro do país dependendo de quem vencer as eleições presidenciais. O Brasil desempenhou e pode desempenhar um papel importante na resposta internacional ao conflito russo. Se Lula fosse eleito, isso abriria o caminho para relacionamentos mais propícios e harmoniosos no hemisfério.

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