Descrição de chapéu Mundo leu China

Estudo expõe rota de tráfico de mulheres do Paquistão para a China

Países têm feito vista grossa da questão em favor de relações comerciais

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São Paulo

Criminosos dedicados ao tráfico de mulheres chegaram a ser identificados há perto de quatro anos na China e no Paquistão. O episódio fez na época um razoável barulho na mídia asiática. Mas desde dezembro de 2019 não se fala mais do assunto.

O tema foi recentemente desenterrado nos Estados Unidos pela Brookings Institution, reputado centro de estudos com sede em Washington. Uma de suas pesquisadoras, Madiha Afzal, obteve ajuda do Departamento de Estado e do Institute for War and Peace para uma investigação sobre o escandaloso sumiço de um assunto que incomodava muita gente. O estudo está disponível na internet em espanhol.

Não se sabe ao certo quantas vítimas foram feitas por esse grupo do crime organizado. Um levantamento da polícia paquistanesa cita 629 mulheres adultas e adolescentes, mas esse número, divulgado já há algum tempo pela Associated Press, está com certeza subnotificado.

Há basicamente dois tipos de vítimas. De um lado, obviamente a prostituição. Famílias paquistanesas de recursos modestos aceitam um dote que pode chegar a US$ 5.000 (R$ 25,8 mil) para que suas filhas se "casem" com chineses, que em seguida atravessam a fronteira e as entregam a casas de prostitutas.

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Rabia Kanwal era parte de um grupo de 150 paquistanesas levadas para a China em 2019 como supostas noivas de chineses, mas forçadas à prostituição em muitos casos - The New York Times

O segundo tipo de noivas se destina a verdadeiros matrimônios, por uma razão fácil de entender. De 1980 a 2016 vigorou na China a política de um só filho por casal, maneira draconiana e burra de conter a explosão demográfica.

Nesse longo período, as famílias preferiam ter homens a mulheres, e para tanto recorriam ao aborto e excepcionalmente ao infanticídio. O resultado é que a China tem hoje 36 milhões de homens para os quais, no momento de procurar uma noiva, não há mulheres disponíveis. A solução consiste, então, em importá-las.

O Paquistão não é o único país que as fornece. Elas também chegam do Laos, do Camboja, da Coreia do Norte, do Vietnã e de Mianmar, segundo ONGs de direitos humanos. Os traficantes, travestidos de agentes matrimoniais, recorrem à pequena minoria de cristãs paquistanesas. As muçulmanas dão bem mais trabalho, porque exigem ao menos um simulacro da conversão do noivo ao islã.

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A paquistanesa Rabia Kanwal ao lado do marido, o chinês Zhang Shucheng, em Islamabad, Paquistão, em janeiro de 2019; ela era uma das mulheres que teriam sido vítima de uma rede de tráfico de pessoas - The New York Times

Mas vejamos os motivos pelos quais a rede de traficantes não chegou a ser desmantelada. Uma das razões, diz a pesquisadora Madiha Afzal, está no possível excesso de zelo das autoridades paquistanesas em tratar de forma pudica a imagem de sua população feminina. Essa imagem sairia machucada com escândalos permanentes sobre a venda de noivas ou prostitutas.

Uma segunda razão é bem mais sonante e remete aos US$ 62 bilhões (R$ 320 bilhões) de um corredor comercial que passa pelo Paquistão antes de desembocar na China. Os dois países preservam carinhosamente suas relações, que sairiam chamuscadas em caso de escândalo sexual.

É bem verdade que a embaixada chinesa em Islamabad denunciou a dimensão criminosa de um primeiro episódio que cheirava a prostituição. Foi quando uma emissora de TV de Lahore, cidade com 11 milhões de habitantes, noticiou que um grupo de "noivas" se preparava para deixar o país em companhia de supostos pares chineses.

Nas semanas seguintes o caldo numericamente engrossou. A polícia paquistanesa prendeu 52 traficantes e os levou aos tribunais. Mas eis que, por motivos misteriosos, as autoridades locais mandaram soltar todo mundo e ainda recomendaram à mídia para que não fizesse mais estardalhaço sobre o assunto.

O que se supõe é que falaram mais alto os dólares do corredor comercial entre a China e o Paquistão. Assunto em seguida —estamos em 2019— discutido em Pequim por militares paquistaneses.

E vejam que as relações entre os dois países não são nem um pouco simétricas. Os chineses têm um peso econômico muito maior e podem impor, discretamente, a tonalidade de sua política em favor de jovens esposas ou prostitutas.

Essa falta de simetria também transparece com o silêncio suspeito do Paquistão com relação à perseguição, pela China, de sua minoria étnica muçulmana. Lembrem-se um pouco da história da descolonização da Ásia. O Paquistão se separou da Índia porque aceitava apenas sobreviver como um país independente, caso oficialmente ligado ao islã.

Um último detalhe. China e Paquistão aparecem muito mal na foto do último relatório (2021) do Departamento de Estado sobre o tráfico de pessoas. Os chineses recebem nota três, a pior disponível, e os paquistaneses, a nota dois. Têm a mão suja no comércio de seres humanos pela fronteira em comum.

Esse quadro possui apenas uma circunstância atenuante. Caso a importação ocorra por motivos meramente conjugais, a cultura paquistanesa permite que a família da noiva receba um dote que compense a falta que a jovem noiva fará como mão de obra doméstica.

Tráfico de Noivas no Corredor Econômico China-Paquistão

  • Onde Disponível no site da entidade: https://brook.gs/3PnOqLD
  • Autor Madiha Afzal
  • Editora Brookings Institution
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