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Confiança do regime chinês pode acabar se revelando uma fraqueza

Para analistas, Xi faz país deixar de prestar atenção a seus problemas enquanto exagera deficiências dos EUA

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Li Yuan
The New York Times

Nos dez anos de de sua gestão na China, o líder Xi Jinping vem procurando imbuir a população de confiança, dizendo aos chineses que o país está se saindo muito bem em comparação com o caótico Ocidente.

Xi tem dito à geração mais jovem que a China pode finalmente encarar o mundo de igual para igual. "O país não é mais tão atrasado", disse ele no ano passado. "O Oriente está em ascensão e o Ocidente em queda", declarou, num momento em que os EUA e outros países pareciam estar atolados em altos índices de Covid, tensões raciais e outros problemas.

Líder da China, Xi Jinping, discursa na cerimônia de abertura de uma sessão de estudos para funcionários de nível ministerial, em Pequim
Líder da China, Xi Jinping, discursa na cerimônia de abertura de uma sessão de estudos para funcionários de nível ministerial, em Pequim - Xinhua - 27.jul.22 /Ju Peng

Xi vem dizendo a 1,4 bilhão de chineses que eles devem ter orgulho da cultura do país, de seu sistema de governança e seu futuro de grande potência. Tudo isso somado forma sua filosofia política característica, descrita às vezes como "a doutrina da confiança".

Boa parte desse orgulho é justificado, mas o sentimento também alimenta a arrogância. Oferece a Xi uma justificativa para desmontar as políticas de abertura que ajudaram a China a emergir do isolamento internacional e da pobreza abjeta em que vivia sob o ex-dirigente comunista Mao Tse-tung. E também vem incentivando os nacionalistas extremos que alardeiam a superioridade chinesa e que agora, após a visita a Taiwan da presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, estão exortando Pequim a partir para um confronto militar com a ilha.

O discurso estridente desses nacionalistas revela em que baixa conta eles têm o poder dos EUA e quão facilmente consideram que a China venceria uma disputa contra os americanos. Isso está deixando nacionalistas mais moderados incomodados, levantando receios de que Pequim possa sentir-se compelida a agir com dureza.

Esse tipo de sentimento e posicionamento nacionalista eleva o risco de guerra, especialmente no momento em que a China estabelece um novo status quo com Taiwan, tendo anunciado na terça-feira (9) que vai continuar a realizar exercícios militares aéreos e marítimos em torno da ilha democrática.

No contexto da rivalidade entre EUA e China, essa tendência a um excesso de confiança também pode converter-se em fraqueza para Pequim, impedindo de enxergar as próprias dificuldades. Isso pode ser uma bênção para os EUA, se conseguirem fazer o que é preciso.

O povo chinês, não o regime, tem todos os motivos para sentir orgulho e confiança em suas conquistas das últimas quatro décadas. Criaram algumas das empresas mais bem-sucedidas do mundo, converteram o país num colosso manufatureiro e no maior mercado consumidor mundial de carros, smartphones e marcas de luxo. Construíram arranha-céus, metrôs, rodovias e trens-bala, alguns dos melhores do mundo.

Os EUA, por outro lado, têm parecido estar atolados em seus muitos problemas internos e frequentemente paralisados demais para conseguir resolver seus problemas. Antes da pandemia, acostumei-me a ver chineses voltando de viagens aos EUA e me contando como acharam o país atrasado, maltrapilho e nada impressionante.

Alguns deles se recusaram a andar de metrô em Nova York, dizendo que era sujo, malcheiroso e cheio de interrupções no serviço. Ficaram chocados com a falta de transporte público em Los Angeles e as más condições das rodovias no Vale do Silício. Não entenderam por que a rica San Francisco estava cheia de pessoas em situação de rua. Ficaram profundamente perturbados pela violência armada e a falha das leis em controlá-la.

A maioria dessas pessoas não era nacionalista. Eram pessoas das elites altamente instruídas, que cresceram na pobreza, beneficiaram-se da abertura da China e haviam visto os EUA como ideal. Os EUA os deixaram ao mesmo tempo deslumbrados e decepcionados.

Mas para muitos outros chineses, especialmente os mais jovens, a ideia de um Oriente em ascensão e um Ocidente em queda é um fato aceito. Os programas noticiosos e as redes sociais estão cheios desse dogma, que é ensinado em aulas de ciência política, seguindo ordens de Xi.

Yan Xuetong, professor de estudos internacionais na Universidade Tsinghua, tende ao pensamento nacionalista. Em conferência em janeiro, ele disse que os estudantes universitários da China precisam aprender mais sobre o mundo. Eles frequentemente têm uma visão binária, pensando que "apenas a China é justa e inocente, enquanto todos os outros países, especialmente os ocidentais, são ‘perversos’, e que os ocidentais obrigatoriamente odeiam a China".

Segundo ele, os estudantes "geralmente têm um sentimento muito forte de superioridade e confiança" nas relações internacionais e frequentemente "encaram os outros países como inferiores".

A propaganda política chinesa sempre procurou destacar as conquistas da China e as falhas do Ocidente. Em 30 de dezembro de 1958, quando o país estava começando a sofrer a Grande Fome que levaria milhões de pessoas à morte por inanição, a primeira página do Diário do Povo anunciava o sucesso da produção industrial e agrícola. Na seção de notícias internacionais, as reportagens sobre países socialistas, como a Coreia do Norte, seguiam um tom celebratório, enquanto os artigos sobre o Ocidente capitalista tratavam apenas de seus problemas econômicos e políticos.

Eu cresci lendo uma coluna de jornal intitulada "O socialismo é bom. O capitalismo é mau". Semanalmente, milhões de leitores jovens como eu consumíamos reportagens enviesadas sobre uma menina americana que passava fome ou um garoto norte-coreano que vivia uma vida feliz. Acreditamos nessas histórias até o momento em que a China se abriu para o mundo, quando entendemos que nosso país socialista era extremamente pobre.

Isso mudou até certo ponto nas décadas de 1900 e 2000, quando o Partido Comunista Chinês permitiu algumas reportagens investigativas e críticas públicas online. Mas, sob Xi, tudo o que diz respeito à China exala "energia positiva", incluindo as previsões econômicas, enquanto o Ocidente, em especial os EUA, é retratado cada vez mais como perverso ou em declínio.

Em 2018, ansiosa por atribuir os sucessos do país ao partido, a emissora estatal CCTV transmitiu um documentário intitulado "Amazing China". Numa seção sobre os avanços na erradicação da pobreza, o filme mostrou Xi sentado entre agricultores, falando de como a renda deles se multiplicara por 20 em 20 anos. "Quem mais poderia ter feito isso?", perguntou. "Apenas o Partido Comunista. Apenas nosso sistema socialista teria conseguido."

Mas países capitalistas como o Japão e a Coreia do Sul passaram por transformações econômicas semelhantes décadas antes. Nos últimos dois anos, muitos artigos noticiosos e ensaios teóricos na imprensa estatal têm contrastado a governança ordeira da China com o "Ocidente caótico", citando o tratamento equivocado dado pelos EUA à pandemia, seus protestos amplos contra o racismo e os muitos massacres a tiros cometidos no país.

Quando os EUA e alguns outros países ocidentais tiveram dificuldade em sua resposta à Covid, a mídia estatal e muitos influenciadores das redes sociais chinesas os incentivaram a "copiar a lição de casa da China".

Wang Jisi, professor de estudos internacionais na Universidade de Pequim e especialista em relações EUA-China, queixou-se em julho, num fórum sobre a paz, que o principal programa de notícias da CCTV punha no ar pelo menos duas reportagens sobre os EUA toda noite e que as duas eram negativas.

"Ou é sobre outro massacre a tiros ou sobre mais um caso de tensões raciais ou sobre a resposta inadequada à pandemia", comentou. "Por que não podemos falar do que acontece na África ou na América Latina e não falar sempre sobre as coisas ruins que acontecem nos EUA?"

Neste ano, em entrevista a um periódico acadêmico, Wang procurou corrigir a ideia de que os EUA estão em declínio. Ele argumentou que, embora a posição internacional americana tenha sofrido um declínio relativo entre 1995 e 2011, sua parcela do PIB global subiu na década seguinte a 2011. Disse que não há evidências suficientes para concluir que a economia americana esteja em declínio irreversível, embora tenha reconhecido que o soft power dos EUA diminuiu.

Para a China, o perigo de acreditar em sua própria propaganda política enganosa é que o país deixa de prestar atenção a seus próprios problemas, enquanto exagera as fraquezas dos EUA.

A aversão que o Partido Comunista tem pela verdade e sua obsessão por controle estão tendo efeito inverso ao desejado. A política de Covid zero de Xi, que depende de lockdowns e testes em massa, está prejudicando a economia tremendamente. Mas, como nenhuma crítica é permitida, o país está em grande medida seguindo adiante com as restrições rígidas, enquanto boa parte do mundo volta à normalidade.

Tradução de Clara Allain

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