Candidatos miram diplomacia ambiental após retrocessos sob Bolsonaro

Analistas veem desafio no setor; Lula e Tebet estudam secretaria aos moldes da de John Kerry nos EUA

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São Paulo

Derrota de Lula seria desastre para a democracia e o planeta, disse editorial do britânico The Guardian. Amazônia emerge no centro da campanha presidencial, afirmou o americano New York Times. Destruição da floresta dispara antes das eleições, relatou o Wall Street Journal. No noticiário sobre o pleito do Brasil no exterior, viu-se o meio ambiente como maior preocupação da comunidade internacional.

A gestão de Jair Bolsonaro, marcada por retrocessos como recordes de desmatamento e o desmonte de órgãos de fiscalização, fez com que o país passasse de liderança na diplomacia ligada ao tema a uma espécie de pária. "A diplomacia brasileira está sequestrada por uma má política ambiental", diz Ana Toni, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade (ICS). "Em qualquer reunião em que o país esteja, a pergunta que se faz é sobre ambiente."

Ela e Cíntya Feitosa, também do ICS, são autoras de um artigo que analisa a diplomacia ambiental do atual governo. Elas argumentam que Bolsonaro replicou nas relações exteriores políticas de líderes populistas de direita como o americano Donald Trump e o húngaro Viktor Orbán, igualando pautas como a emergência climática e a fiscalização ambiental a ameaças à liberdade e à soberania.

Bombeiros em combate a incêndio na floresta amazônica, na região de Apuí - Michael Dantas - 21.set.22/AFP

Ao menosprezar a diplomacia ambiental, porém, o presidente abandonou um dos maiores "soft powers" brasileiros sem ter o que colocar no lugar, concluem as pesquisadoras. Toni avalia que Bolsonaro cometeu um erro grave de cálculo ao calcular o peso do ambiente na geopolítica —assunto que extrapolou os limites do ativismo ambiental e passou a guiar discussões maiores, de energia a commodities.

Em certa medida, lembra a especialista, a postura prejudicou até ambições da gestão para as relações exteriores: o acordo entre Mercosul e União Europeia, hoje travado, e a entrada do Brasil na OCDE, grupo de países ricos, que depende do cumprimento de uma série de exigências na área.

"A diplomacia ambiental virou econômica. Você não vê mais o tema do clima como lateral em reuniões do G7, do G20", diz Feitosa.

Esse entendimento encontra ecos nos planos de governo dos principais candidatos à Presidência para a área —Lula (PT), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB). A equipe de Jair Bolsonaro (PL) pediu que a reportagem encaminhasse um pedido de entrevista ao Itamaraty, não respondido até a publicação deste texto.

Coordenador do programa de Ciro, Nelson Marconi afirma que o tema é horizontal, que perpassa várias áreas. "Ele talvez não esteja falando com esse título específico, mas tem falado bastante", diz, sobre declarações do candidato.

O cofundador da Natura Pedro Passos, que formulou o programa ambiental de Tebet ao lado do ex-presidente do Itaú e colunista da Folha Candido Bracher, defende que o ambiente pode servir para reconectar o Brasil à economia global. "O mundo precisa das soluções que o Brasil pode oferecer", afirma o empresário, citando o potencial do mercado de créditos de carbono. "Temos uma moeda de troca importante, que não é o toma lá, dá cá de antes.

Passos diz não ver contradição entre as promessas da emedebista de zerar o desmatamento e sua ligação com o agronegócio. "O agro organizado defende a agenda ambiental. O que vemos são os pequenos informais, que tomam proveito dessa situação de descontrole para crescer de forma ilegal."

Por fim, a dois dias do primeiro turno, a campanha de Lula ainda finaliza um documento detalhando a estratégia internacional para o clima em um eventual governo. O texto foi construído a partir de conversas com 65 atores de diversos setores da sociedade e regiões do país e de articulações com nomes ligados ao partido. Uma das promessas é a proposição de uma agenda climática do Sul global, que seja mais abrangente do que a de transição energética e mitigação defendida pelas nações desenvolvidas.

A ideia é que o Brasil possa aglutinar em torno do tema outros países em desenvolvimento —alguns dos mais prejudicados pela crise do clima. Uma das propostas concretas nesse sentido é a de que o Brasil sedie uma conferência do clima do Sul.

Representantes das três campanhas também afirmam que a primeira ação de seus eventuais governos para o setor seria uma imediata retomada da fiscalização. Isso implicaria reestruturar órgãos de comando e controle como Ibama e Funai e revogar decretos que permitiram "passar a boiada" no governo atual.

A medida é vista como pré-requisito para o Brasil retomar a credibilidade junto à comunidade internacional —mesmo que, em última instância, só resultados concretos garantam esse retorno, declara Rubens Barbosa, diplomata com mais de 40 anos de serviço e hoje à frente do Irice (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior). A entidade lançou recentemente um estudo que avalia o grau de cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil em mais de 60 normas e 15 acordos ambientais desde 1992.

Presidente do conselho do Instituto Arapyaú —fundação privada que investe em projetos de desenvolvimento sustentável— e cofundador da rede Uma Concertação pela Amazônia, incubada pela entidade, Roberto Waack acrescenta que outras sinalizações importantes nesse sentido seriam a presença do governo de transição em eventos como a COP27 e o reconhecimento da importância dos povos indígenas para as discussões sobre preservação.

Ele e outros membros da iniciativa defendem a criação de uma Secretaria de Estado de Emergência Climática, aos moldes da função que John Kerry exerce hoje na Casa Branca. A ideia é discutida na campanha de Lula —na qual nomes citados para o posto envolvem os das ex-ministras Izabella Teixeira e Marina Silva—, e o plano de governo de Tebet propõe iniciativa parecida.

Waack afirma que a secretaria seria uma maneira de garantir que a agenda do clima esteja presente nas discussões de todos os órgãos do Executivo —Itamaraty inclusive. Além disso, ajudaria a acelerar processos e indicar prioridades programáticas para o Legislativo. A proposta é uma das muitas de um plano de metas organizado pela Concertação pela Amazônia, a ser apresentado a um eventual governo de transição após a eleição.

O especialista admite que essas sinalizações talvez sejam insuficientes caso o atual presidente se reeleja. "Qualquer outro governo terá um voto de confiança da comunidade internacional. Mas Bolsonaro tem o desafio adicional de reconstruir a sua credibilidade."

Ele defende, de todo modo, que o país tem condições para trocar a estratégia defensiva por uma ofensiva no campo. "O mundo da crise climática oferece muito mais oportunidades do que ameaças para o Brasil. Se controlamos o desmatamento, revertemos o jogo e passamos a ser o grande agente da oferta de commodities de baixo carbono no mundo."


A diplomacia ambiental no Brasil

1972-1989

  • Conferência de Estocolmo (1972) marca estreia do conceito; sob ditadura militar, Brasil temia que tratados ambientais impusessem limitações à exploração do território
  • Evento se desdobra, no Brasil, na criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente (1974) e do Sistema Nacional de Meio Ambiente (1981), culminando na inclusão de princípios de proteção do ambiente na Constituição de 1988

1990–2004

  • Governo Collor (1990-1992) inaugura abertura ao tema e sedia primeira conferência da ONU sobre o setor, a Rio-92
  • Atuação brasileira é marcada por adoção radical do princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas —pelo qual países desenvolvidos têm obrigação maior de reduzir emissões
  • Visão conservadora prevalece nas negociações do Protocolo de Kyoto (1996-2001); Brasil apresenta ao lado dos EUA o mecanismo de desenvolvimento limpo, que permite que países desenvolvidos cumpram parte de suas obrigações financiando projetos em nações em desenvolvimento
  • Com saída dos EUA do Protocolo de Kyoto, em 2001, Brasil lidera esforço dentro do G77 para convencer países emergentes a assinar o documento

2005-2010

  • Estabelecimento de série de mecanismos de controle do desmatamento leva a recordes negativos de devastação ambiental
  • Período é marcado por moderação do princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, mas país refuta metas de mitigação mandatórias para países em desenvolvimento na COP15
  • País faz primeiro compromisso voluntário de redução das emissões

2010-2018

  • Crise global tira atenção das questões ambientais
  • Governo Temer (2016-2018) sanciona medidas que prejudicam a Amazônia
  • No Acordo de Paris (2015), Brasil avança na ideia de que países desenvolvidos assumem compromissos imediatos, enquanto os demais os assumem gradualmente

2019-hoje

  • Alinhamento aos EUA de Donald Trump, negacionista climático

Fontes: Folha e estudo "Brazilian Climate Policy", de Joana Pereira e Eduardo Viola

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