Eleitores brasileiros na Venezuela reclamam de ausência de colégios eleitorais

Impossibilidade de participar do pleito gera frustração entre imigrantes brasileiros em relação a governo Bolsonaro

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Elianah Jorge
Caracas | RFI

Indignação é o sentimento que paira entre os brasileiros residentes na Venezuela. Eles não poderão participar no próximo domingo (2) de uma das eleições mais importantes dos últimos tempos. Desde março de 2020, por decisão do Itamaraty, não há representação diplomática do Brasil no país de Nicolás Maduro.

A rusga política entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o venezuelano afetou cerca de 10 mil brasileiros que agora estão sem acesso a direitos constitucionais, entre eles o do voto. Não fosse pela decisão radical, Bolsonaro poderia voltar a ganhar no país, onde tradicionalmente o eleitorado privilegia candidatos da direita brasileira.

Presidente Jair Bolsonaro, ao lado do então presidente da Colômbia, Ivan Duque, reconhece Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, durante evento em Davos - Gabrice Coffrini - 23.jan.19/AFP

"Estou na Venezuela há 45 anos e sempre votei. Essa será a única vez que não teremos oportunidade de votar porque não temos nem consulado nem embaixada. Queria muito votar nessas eleições, porque já tenho meu candidato preferido", declarou a paulistana Amra Zatar.

A comerciante Imara Santos conta que, na eleição de 2018, quando ainda era possível votar nos consulados na Venezuela, apoiou Bolsonaro motivada pela família. Mas a gestão do presidente a decepcionou: "Votei por ele, mas não votaria nunca mais. Ele não gosta da gente, do brasileiro!"

Uma das mágoas surgiu na época do fechamento das representações diplomáticas. Ela afirma que se sentiu abandonada pelo governo brasileiro.

A saída da Venezuela orquestrada pelo Itamaraty aconteceu quando dezenas de países rejeitaram o regime de Maduro em respaldo à figura do opositor autoproclamado presidente interino Juan Guaidó. Para Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a decisão foi outro fator de turbulência do governo Bolsonaro.

"Isso criou uma anomalia diplomática que resultou em muitos problemas e dificuldades e que, no final das contas, trouxe mais obstáculos que soluções para o modo como a Venezuela se relaciona com países vizinhos."

Outro eleitor de Bolsonaro na Venezuela é o estudante de medicina Lucas Medeiros. Ele votou no atual presidente quando ainda morava no Brasil, motivado pela ala evangélica, uma das principais bases eleitorais do ex-militar.

"Eu participava da igreja evangélica, em que Bolsonaro teve muita influência por causa daquele discurso de 'Deus, pátria e família', além da decepção que a gente vinha tendo com o Partido dos Trabalhadores", argumenta.

Mas as polêmicas falas de Bolsonaro e a falta de empatia do presidente levaram Lucas a reavaliar seu voto. "Nesse momento eu não votaria nele outra vez. Os discursos que ele faz e algumas posturas que ele toma no país ferem a Constituição e os direitos humanos, principalmente durante a pandemia. Em nenhum momento ele se solidarizou com as pessoas que estavam com Covid."

A reportagem da RFI Brasil também falou com outros eleitores do presidente na Venezuela. Apesar da queixa comum de querer votar mas não poder, eles preferiram não dar declarações. Uma dessas pessoas, um comerciante que mora no país desde 1970, disse que voltaria a votar no atual chefe de Estado apesar de ele ter dado as costas aos brasileiros que estão na Venezuela.

Outro que preferiu manter o anonimato, afirmou que era absolutamente contra a esquerda.

'Não seremos a Venezuela'

A frase "não seremos a Venezuela", repetida pelo presidente Bolsonaro e seus seguidores, mostra uma rejeição ao país com o qual o Brasil compartilha mais de 2.000 quilômetros de fronteira.

Referências e imagens de pontos críticos da Venezuela foram amplamente utilizadas em discursos presidenciais e também em montagens que circulam pelas redes sociais. Algumas engrossam a lista das fake news que circulam pelo Brasil.

"Tenho amigos que dizem 'a gente não quer ser como a Venezuela'. Então pergunto o que eles sabem sobre o país e eles respondem: 'o que lemos na imprensa'. Eu devolvo dizendo que aqui também falam muito mal do Bolsonaro", conta Amra.

Ao citar a Venezuela, Bolsonaro e seu eleitorado se referem ao período mais crítico da recente história do país. Entre 2013 e 2019, a forte escassez de alimentos, a queda abrupta do valor da moeda nacional e o alarmante aumento da pobreza assombraram o mundo. Cenas dos violentos protestos de 2017, que deixaram mais de 130 mortos, também fazem parte da memória coletiva.

Neste período, ganhou força o crescente fluxo migratório. São mais de 6 milhões de venezuelanos espalhados pelo mundo. De acordo com o Subcomitê Federal para o Recebimento de Imigrantes, até setembro havia cerca de 352 mil venezuelanos registrados em todo o Brasil.

"Há um ambiente regional diferente, mais propício ao retorno de um diálogo com a Venezuela, particularmente por parte da Colômbia. Mas não sabemos ainda em que medida essa retomada das negociações vai significar algum tipo de condescendência com Maduro, com as violações de direitos humanos na Venezuela, com o autoritarismo do regime Maduro. Mas ela abre uma rodada de negociações políticas", analisa Maurício Santoro, citando a reaproximação entre Colômbia e Venezuela e a atual tendência à esquerda na América do Sul.

Difícil chegar ao Brasil

Alguns entrevistados afirmaram ter tido vontade de ir ao Brasil exclusivamente para a votação. Mas entre a falta de tempo hábil para a mudança de domicílio eleitoral e os preços altos das passagens, decidiram acompanhar de longe. "Custa muito caro sair da Venezuela para ir votar no Brasil. Mas eu gostaria muito de estar no Brasil neste domingo para votar", diz Neusa Marcelino.

A dívida do regime com algumas linhas aéreas e consequências indiretas das sanções aplicadas ao país levaram a Venezuela a ficar ainda mais isolada. Há mais de uma década não existem voos diretos para o Brasil. É preciso fazer escala no Panamá ou em outro país, e uma passagem de ida e volta pode custar até US$ 1.600 (R$ 8.642).

Por terra, as condições são péssimas, sobretudo no trecho de Las Claritas, no estado Bolívar, quase na fronteira com o Brasil. O fechamento das representações diplomáticas ampliou a percepção de distanciamento entre os dois países.

Um mercado a ser explorado

A situação da Venezuela começou a mudar em 2019, quando o ditador Nicolás Maduro lançou medidas de flexibilização econômica para acabar com a escassez. Entre os beneficiados estão empresas localizadas no Norte do Brasil, o que tornou comum encontrar nas gôndolas venezuelanas açúcar, macarrão, molhos e misturas para alimentos vindos do Brasil.

Continua faltando energia elétrica em algumas cidades do país, e a crônica falta de água também acomete Caracas. A coleta do lixo é precária, e professores protestam contra as insalubres condições de ensino. Apesar dos graves problemas, a Venezuela tenta se reerguer.

Estimativas apontam para uma surpreendente elevação de 10% do PIB alavancada pela estabilização da produção petrolífera e o fim da hiperinflação, que por anos foi classificada como a maior do mundo.

Maduro tem convidado investidores internacionais a modernizar as infraestruturas venezuelanas, mas ainda falta credibilidade, fragilizada durante a "era das privatizações" impostas por Hugo Chávez.

A Venezuela é um país que importa pelo menos 80% de tudo o que consome. Quem vem aproveitando o isolamento internacional do país é o Irã, país que fornece alimentos e gasolina e, em breve, voltará a produzir veículos. Rússia, China e Turquia também fortaleceram os laços com o governo de Maduro.

Caso haja uma mudança na política externa brasileira, as relações Brasília-Caracas podem ser interessantes para ambos os países. Embora a negociação de alimentos brasileiros mantenha aquecido o comércio bilateral, a balança ainda está longe dos tempos áureos quando bilhões de dólares eram negociados pelos dois países.

Entre 2002 e 2010 o comércio entre Brasil e Venezuela cresceu mais de 227%, subindo de US$ 1,43 bilhão para US$ 4,68 bilhões.

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