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Financial Times América Latina

Chile disse não ao populismo ao rejeitar Constituição utópica

Processo para nova Carta, mais moderada, promete ser pacífico e democrático

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Michael Stott
Financial Times

O populismo lançou uma sombra particularmente longa na América Latina. Oradores que agradam à multidão proclamando uma nova utopia salpicam sua história recente.

O general Juan Domingo Perón gerou um movimento na década de 1940, o peronismo, tão poderoso que dominou a política argentina até hoje. Mais recentemente, a "Revolução Bolivariana" de Hugo Chávez, na Venezuela, e a "Quarta Transformação" de Andrés Manuel López Obrador, no México, seduziram os eleitores com promessas mágicas que contradiziam o autoritarismo de seus respectivos líderes.

Chilenos que rejeitaram a proposta de Constituição comemoram o resultado, em Santiago - Martin Bernetti - 4.set.22/AFP

Nesse cenário político pouco promissor, a decisão do Chile em um plebiscito no domingo (4) de rejeitar decisivamente uma Constituição impossivelmente utópica se destaca como um exemplo notável de maturidade cívica. É um revés para o presidente de esquerda Gabriel Boric, ex-líder estudantil que apostou muito capital político no projeto radical agora rejeitado.

Aos eleitores foi prometida, quase literalmente, a terra (o projeto teria garantido direitos constitucionais à natureza). Os atrativos eram abundantes entre os 388 artigos elaborados por uma assembleia especialmente eleita após um ano de debates às vezes estridentes.

O projeto de Constituição obrigava o Estado não apenas a fornecer saúde, educação e moradia, como também a garantir a produção de alimentos saudáveis e a promoção da culinária nacional chilena. Estranhamente, num país onde milhões ainda carecem de serviços de internet banda larga, teria garantido o direito à "desconexão digital".

No entanto, os chilenos perceberam a visão utópica em meio a uma realidade totalmente mais prosaica de inflação crescente, economia em desaceleração e inúmeros desafios econômicos. Quase 86% votaram e quase 62% destes votaram contra a nova Constituição.

Essa maturidade eleitoral é altamente incomum em qualquer lugar, muito menos em um país de renda média. De acordo com um estudo global realizado por dois acadêmicos americanos, Zachary Elkins e Alexander Hudson, os eleitores aprovaram 94% das 179 novas Constituições apresentadas desde a Revolução Francesa de 1789.

Mas os chilenos não abandonaram o desejo de se livrar do pecado original da Constituição atual, elaborada sob a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990). O presidente de esquerda da Colômbia, Gustavo Petro, tuitou após o resultado de domingo à noite que "Pinochet voltou à vida". Ele não poderia estar mais errado.

"Alguns limites foram ultrapassados e não há como voltar atrás", diz Andrés Velasco, ex-político chileno que hoje é reitor da Escola de Políticas Públicas da London School of Economics. "Haverá uma nova Constituição. A representação de mulheres e minorias étnicas está agora enraizada na política, o acesso ao aborto será ampliado e o casamento gay permanecerá legal. Em valores e inclusão o Chile avançou, e isso não vai mudar."

O que provavelmente virá a seguir é uma nova tentativa de reescrever a Constituição. Esta corrigirá os erros do passado, garantindo que os delegados de uma nova Assembleia Constituinte sejam mais representativos de um país amplamente dividido entre esquerda e direita. Ela ainda garantirá que as comunidades indígenas marginalizadas tenham representação, mas que esta seja proporcional. Não dará aos ativistas de tema único uma vantagem injusta.

Desse processo provavelmente surgirá uma nova Carta que confira direitos individuais mais fortes aos chilenos e um papel maior ao Estado em garantir os serviços públicos essenciais. Em suma, algo mais parecido com um Estado de bem-estar ao estilo europeu e menos um mercado livre de Friedman. Será uma evolução em vez de uma revolução.

De modo encorajador, esse processo promete ser pacífico e democrático. Poucas horas após o resultado na noite deste domingo (4), os chilenos da maior parte do espectro político aceitaram o resultado como justo, fizeram declarações conciliatórias e começaram a formar um consenso para uma nova carta mais moderada. Até Boric aceitou a necessidade de um documento "que nos una como país".

Em seu desejo avassalador de rejeitar o populismo e abraçar o consenso, expresso de forma pacífica e democrática, os chilenos deram um exemplo ao mundo.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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