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Plebiscito foi revanche do Chile rural contra progressismo de Santiago, diz analista

Para Eugenio Tironi, gestão Boric pode melhorar se aprender lições de derrota em consulta sobre Constituição

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Santiago

Mais do que um confronto entre esquerda e direita, o plebiscito deste domingo (4), no Chile, em que a nova Constituição foi rejeitada, marca um confronto de gerações e uma derrota de Santiago frente ao resto do país, na visão de Eugenio Tironi, experiente sociólogo e consultor político.

Pesquisa do instituto Nexo divulgada nesta segunda (5) mostrou que a vitória do Rejeito foi muito mais ampla em áreas rurais —de 72,5% a 27,5%, uma diferença de 45 pontos percentuais, enquanto em regiões mais urbanas ela foi de 15 pontos.

Para Tironi, a Assembleia Constituinte errou, ao não perceber o descontentamento de parte da sociedade que embarcou em uma onda conservadora, mas o presidente Gabriel Boric tem a chance de melhorar sua gestão se aprender com as lições da derrota. O esquerdista, na visão do sociólogo, vem lidando habilmente com a negociação política.

Contrários ao novo projeto de Constituição do Chile comemoram após divulgação do resultado do plebiscito, em Santiago
Contrários ao novo projeto de Constituição do Chile comemoram após divulgação do resultado do plebiscito, em Santiago - Claudio Reyes - 4.set.22/AFP

O que significou o resultado do plebiscito? Sabíamos que o mais provável era que a rejeição ganhasse, mas não com essa contundência e esse nível de participação. Havia um padrão nas últimas eleições do voto de mulheres, jovens e urbanos indo para a esquerda, enquanto homens rurais votavam à direita.

Foi uma grande vingança do mundo rural contra jovens progressistas de Santiago. Uma espécie de tentativa de fazê-los ver a realidade, de voltar a valorizar símbolos pátrios, combater uma ideia de fragmentação com outra de unidade, colocar a segurança antes da mudança climática.

É correto analisar o plebiscito como um enfrentamento de direita contra esquerda? Esse aspecto existe, mas foram vários confrontos: um geracional, dos mais velhos contra certa soberba desse governo jovem; da periferia do país contra Santiago; e de uma rejeição transversal à ideia da plurinacionalidade. Esse é um tema duro no Chile, parte de nosso mito fundacional é que somos um país unitário, mestiço, sem diferenças raciais ou étnicas —e que é isso que nos diferencia de Bolívia, Peru ou Equador.

O episódio da performance em Valparaíso que escandalizou a campanha, quando um ator tirou uma bandeira do Chile do ânus de outro, teve impacto, não? Seguramente, porque foi um lembrete de episódios que chocaram parte importante da sociedade nos últimos dois anos —como quando instalaram a Constituinte e não quiseram tocar o hino nacional ou quando colocaram no salão principal as bandeiras de todas as nações indígenas, mas não a nacional. Foi a partir daí que a bandeira chilena virou o símbolo da rejeição e se cantou o hino em vários de seus atos, assim como na comemoração do domingo.

A Assembleia Constituinte se equivocou? Sim, ao não perceber que parte da população vinha sentindo um descontentamento em escalada desde o início da pandemia. Pode-se dizer que ela não dialogou com esse sentimento, de fundo mais conservador e recente. Ele não tem a ver com o pinochetismo, mas é enraizado em problemas do Chile de hoje e desembocou na vitória de [José Antonio] Kast no primeiro turno [da eleição em 2021]. Esse setor considerou o texto extremo, com manifestações de tom ideológico. Houve um descompasso entre a tendência de parte da população e os desejos dos constituintes.

O senhor crê que, por fim, haverá uma nova Constituição? Um acordo é possível? Sim, obviamente. É preciso ter cuidado ao interpretar o domingo. Já cometemos o pecado de superinterpretar as manifestações de 2019: achamos que era sinal de uma tendência histórica, que estávamos vendo o nascimento de uma nova sociedade, menos nacionalista, sintonizada com pautas geracionais contemporâneas. Mas é possível que tenha sido apenas um momento.

E também temos de olhar assim o plebiscito. Talvez não seja um sinal de uma tendência inequívoca ao conservadorismo. Nos dias de hoje, as reações políticas são muito oscilantes.

Se for assim, a derrota de agora pode ser a vitória de amanhã? Claro, o que está sendo visto como a derrota dessa nova esquerda pode ser uma melhora no atual governo a médio prazo, desde que se abrandem posições extremas. É preciso lembrar que esse grupo político rompeu um tabu que dizia que era impossível mudar a Constituição. Eles levaram o limite do possível um pouco mais adiante. E será difícil que, mesmo com a pressão da direita, sejam retirados da nova Carta a questão ambiental, a paridade de gênero, a descentralização administrativa.

Essa nova esquerda pode se chatear e dizer que subiu ao palco e não foi aplaudida, mas é certo que conseguiu colocar a música da festa.

Há risco de polarização? Não vejo isso, decido ao estilo de Boric e da tradição institucional do Chile. Ele se criou no ambiente parlamentar, sabe dialogar. É um estilo novo, mais informal e diferente do [ex-presidente Sebastián] Piñera, mais conflitivo. E no Chile não há divisão como na Argentina. Quando [Jair] Bolsonaro comentou sobre o suposto envolvimento de Boric com atos de vandalismo, todos os partidos se perfilaram em solidariedade a ele. A questão de soberania nacional é muito forte aqui.

Porém, vejo risco de fricção com a direita porque, com a força dos votos da rejeição, os partidos podem pedir uma participação no programa de governo, nas reformas econômicas. É possível que o governo tenha de ceder.

A demora em chegar à nova Carta pode trazer um suspense negativo para a economia? A economia já não vem bem de todo modo. Não é a estabilidade política que a afetaria mais do que outros fatores. O Peru é pura instabilidade e cresce mais que o Chile. O problema é que estamos num momento de recessão muito grande, devido à injeção de dinheiro na pandemia com ajudas do governo e saques nos fundos de pensão, sem contar a Guerra da Ucrânia.


Raio-x | Eugenio Tironi, 71

Doutor em sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e membro da Academia de Ciências Sociais, Políticas e Morais do Instituto do Chile. Foi colaborador dos governos Patricio Aylwin e Eduardo Frei e chefe de comunicação de Ricardo Lagos

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