Grupos ajudam comunidade LGBTQIA+ brasileira em Portugal

Associação em Lisboa vê aumento de migração nos 4 anos de governo Bolsonaro; preconceito contra estrangeiros é entrave

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João Damião
Lisboa | Mensagem de Lisboa

Nany Aguiar procurou em Lisboa a segurança que o "reinado" de Jair Bolsonaro lhe tirou. É quando toca violino ou atua no Palácio do Grilo, em Xabregas, que traz tudo o que sentiu naquela noite de outubro de 2018. A noite em que apagou as luzes de casa, acendeu velas e tomou a decisão de sair do Brasil e deixar para trás o Recife, a cidade onde nasceu há 30 anos, e morar em Lisboa.

Naquela noite, Jair Bolsonaro saía vencedor das eleições presidenciais. A vida de Nany e da comunidade LGBTQIA+ brasileira nunca mais foi a mesma.

Parada Gay em Lisboa - Patricia de Melo Moreira - 21.jun.14/AFP

Apesar de viver no extremo oeste da capital de Pernambuco, Nany Aguiar jamais tirou de perto da casa da mãe, no extremo sul do Recife, seu colégio eleitoral. "Era uma desculpa para passar mais um domingo com ela", diz, rindo. "Nesse dia, votei, almocei com a minha mãe e só voltei para casa à noite."

Foi na viagem de volta, de carro, que a decepção tomou conta de si. Sentava-se no Palácio de Alvorada, a residência oficial do presidente em Brasília, um homem que deu declarações como "ter filho gay é falta de porrada" ou "seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente".

Nany percebeu que as coisas iam mudar. Já estavam mudando. A zona onde vivia é um dos maiores bairros da comunidade trans do Recife. Ali perto, uma praça servia de ponto de convívio da comunidade, onde se faziam até concursos de travestis. Naquela noite, a folia, a cor e a união habituais deram lugar a um silêncio mórbido.

Por toda a cidade, lançavam-se fogos de artifício e ouviam-se tiros. Numa atmosfera sinistra, ouviu-se gritos de "Bolsonaro vai matar viado". "Tive medo", diz Nany. Em casa, "apaguei as luzes, fiquei no silêncio, acendi algumas velas para refletir e foi nessa noite que decidi sair do Brasil".

Terminando o curso de música, Nany estava havia meses a traçar um perfil de estudantes e professores LGBTQIA+ e que servia de tese final, mas foi encorajada pela própria universidade a mudar de tema. "O colegiado me disse que, perante a escalada de violência homofóbica, estimulada pela vitória do Bolsonaro, não iam garantir proteção a ninguém que entrevistei."

"Abriram um regime de exceção, e escrevi um novo trabalho sobre o ensino de violino. Me senti censurada", recorda.

O pior estava por vir. A pessoa com quem Nany tinha uma relação, que se identifica como pessoa não binária, foi vítima de uma tentativa de estupro coletivo perto de casa. "Isso mexeu muito comigo. O lugar onde morávamos deixou de ser hospitaleiro. Todo mundo me conhecia, sabia que era sapatão e que morava na rua tal. Tinha medo."

Não é um medo infundado: 316 é o número de pessoas LGBTQIA+ que morreram de forma violenta no último ano no Brasil, segundo dados do Observatório de Mortes e Violência LGBTQIA+. A Antra, principal associação trans do país, denuncia o Brasil como o país do mundo que mais mata transexuais.

"Não é que mais pessoas ficaram homofóbicas. Aqueles que sempre foram sentiram-se legitimados para exercer violência sobre nós, porque é aquilo que ouvem do cargo mais poderoso do país", explica Nany.

Fugir do Brasil para sobreviver

Nany decidiu sair do Brasil e procurar alguma segurança em Lisboa, aonde chegou em fevereiro de 2019. Portugal é o destino mais escolhido por questões burocráticas: "Aqui os brasileiros não precisam de visto para entrar como turista", ela diz.

E não foram as únicas. Os relatórios de imigração mostram um aumento significativo de brasileiros em Portugal depois da eleição de Jair Bolsonaro. Em 2018, eram 105 mil, passando para 151 mil em 2019 e quase 184 mil em 2020. É impossível quantificar quantos partiram por medo da homofobia, mas a Queer Tropical, coletivo que nasceu na noite eleitoral de 2018 para ajudar brasileiros LGBTQIA+ a ir para Portugal, fala em milhares.

No Porto desde 2009, já casada com uma portuguesa e com duas crianças, Débora Ribeiro, 37, sempre conjugou o trabalho com o ativismo. Lembra-se bem daquela noite, embora não tenha sido uma surpresa o desfecho: "Parte da minha família, branca e de direita, vota em Bolsonaro."

"Ele despertou um sentimento de identificação nas pessoas. Todas tinham ideias negativas sobre imigrantes haitianos ou sobre os pobres. Pensavam: 'Bolsonaro vai colocá-los na linha', e isso é mais forte do que ele ser racista e homofóbico."

De vários amigos, Débora, brasileira de Minas Gerais, começou a receber pedidos desesperados. Queriam entrar em Portugal e mostravam fotografias de agressões que haviam sofrido na rua. "Iam à polícia, mas não faziam nada, porque não havia leis que penalizassem a homofobia", relata.

Ironicamente, a lei que pune a discriminação e o preconceito relativos à identidade ou orientação sexual foi aprovada pelo Senado em 2019, durante o mandato de Jair Bolsonaro. Mas a realidade é outra.

Emmelin de Oliveira, pesquisadora de Direito Internacional e Europeu da Nova School of Law, admite que acompanhou pedidos de estatuto de refugiado de brasileiros LGBTQIA+, tal é a brutalidade das suas histórias. Os pedidos são negados, por vários motivos. Primeiro, há legislação contra a homofobia no país. Segundo, quando se fala em Brasil, "espera-se que os números sejam grandes, por isso números que deviam ser assustadores são minimizados", diz ela.

Depois, há a questão política: "Quando um Estado atribui um estatuto de refugiado, diz que o país de origem não consegue ou não quer proteger aquele grupo. É uma afirmação política", arremata a pesquisadora. Muitos queriam sair.

Durante Parada Gay em Lisboa, grupo segura uma bandeira gigante do arco-íris - Patricia de Melo Moreira -18.jun.11/AFP

Na mesma noite que deu a vitória a Bolsonaro, Débora decidiu agir e criou um grupo no Facebook para dar conselhos sobre migração legal a todos os que se sentiam ameaçados. Em poucas horas, o post chegava aos 6.000 comentários e choviam 2.000 pedidos de adesão ao grupo.

Com 18 brasileiros, do Porto e de Lisboa, começou a dar aconselhamento, de forma voluntária: "Muitos queriam saber questões de documentação, outros sobre o funcionamento do tratamento do HIV em Portugal".

A história de Nany não passou inicialmente pela Queer Tropical. Com amigos na Marinha Grande, foi lá que refez a vida em Portugal, para depois se instalar no Lumiar, em Lisboa. Hoje, Nany continua como violinista e atua com um grupo de imigrantes brasileiras no Palácio do Grilo, num espetáculo de música, dança e movimento.

Em Portugal, aproximou-se da Queer Tropical, que se constituiu há um ano como associação, um ponto de união e de ativismo da comunidade.

A missão da associação é ligar a comunidade a associações portuguesas que prestam auxílio em várias áreas, como habitação, saúde ou justiça. "Há brasileiros que não se sentem no direito de recorrer a associações portuguesas, ora porque estão sem documentos, ora porque não têm número de utente [identificação que dá acesso ao sistema público de saúde]. Nós dizemos 'Vai, não vai acontecer nada'."

Delso Batista, 37, psicólogo e um dos principais membros da Queer Tropical em Lisboa, sentiu todos os desafios de ser um homem brasileiro, negro e gay na cidade. Chegou em 2010, vindo de Minas Gerais. Guiava-se pela narrativa tradicional de um emigrante: "Há um sonho de que do outro lado seja tudo melhor". Embora a homofobia tenha escalado com Bolsonaro, Delso saiu do Brasil pela impossibilidade de ser completamente livre.

"Ser gay e negro no Brasil é um atestado que te coloca em risco de vida. Na rua cheguei a levar um soco de forma gratuita por ser gay. Perdi amigos quando saí do armário", conta. "Evitava falar sobre o assunto, mesmo nos relacionamentos era tudo às escondidas, e isso condicionava a minha autoestima. Há um constante medo de marginalização e de ser alvo de violência."

Em Lisboa, Delso concluiu um mestrado na área de psicologia e conseguiu naturalizar-se português. Hoje, diz que é sua casa —uma que precisa ser ordenada. Embora exista um pacto social para aceitar a homossexualidade, há preconceito. "Mesmo em relações com homens brancos, gays e europeus, que me inferiorizam por ser negro."

Ele percebeu que o racismo ia mitigar parte dos seus sonhos. Sem trabalho como psicólogo, procurou emprego em supermercados e em lavanderias de carros, onde ouviu respostas como "não damos emprego a estrangeiros". "Quando abria a boca, não tinha o sotaque certo."

"Se no Brasil tinha medo de ser gay, em Portugal tenho medo de ser negro", diz. "No Brasil, sendo negro, olhando para todo o canto, vê-se pessoas como tu. Na escola, tinha mais agressões e bullying por conta de ser o menino afeminado, não por ser negro."

Tempos depois, conseguiu um trabalho como psicólogo. "Primeiro tive de estar na empresa três meses sem ganhar nada, como experiência. Depois, passei a ganhar o salário mínimo, na época na ordem dos € 400, ao mesmo tempo que pagava um quarto de € 300", conta Delso. "Demorei muito para ganhar o mesmo que meus colegas portugueses."

Imigrantes LGBTQIA+ brasileiros enfrentam a dupla fragilidade de pertencerem a uma minoria sexual e, muitas vezes, étnica. "Há pessoas que me enviam mensagens dizendo: ‘Não me dão emprego por ser brasileira, não tenho o que comer, tenho de me prostituir’. As pessoas acham que alguém quer estar nessa posição?", questiona Débora Ribeiro.

"Há pessoas que querem se matar. Se há pessoas trans que não têm acesso a tratamento hormonal para continuar a sua transição, como é que a cabeça delas estará?"

E muito tem de ser feito para continuar a ajudar a comunidade, que espera para este domingo (30) uma escolha consciente, com medo e esperança. Nany admite: "Se Lula ganhar, penso em voltar para o Brasil, mas primeiro quero ver como correm os primeiros cem dias de governo". Porque ninguém quer estar longe dos seus. Quando se parte, é por algo maior.

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