Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Não há razão para achar que destituição de Putin traria paz, diz analista

Autor de livros sobre laços entre Rússia e Ucrânia avalia que Moscou pode levar cidadãos a regiões anexadas

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São Paulo

Estudioso das relações entre Rússia e Ucrânia, o americano Paul D'Anieri, 57, avalia que o eventual deslocamento interno de ucranianos nas regiões recém-anexadas por Moscou em referendos de fachada pode fazer com que o Kremlin incentive a migração a esses locais —num movimento semelhante ao que, nos anos 1930, daria origem à porção russófona do Donbass, que está na raiz da guerra atual.

Em viagem ao Brasil para um evento da Universidade de São Paulo, o analista conversou com a Folha sobre as razões do conflito e possíveis caminhos para sua solução. "Quem acha que a invasão dos EUA ao Iraque e ao Afeganistão foi ruim deveria condenar a invasão à Ucrânia. Essa guerra é dez vezes pior."

Mulher posa em frente a uma casa destruída, em Kramatorsk, na região de Donetsk
Mulher posa em frente a uma casa destruída, em Kramatorsk, na região de Donetsk - Juan Barreto -12.set.22/AFP

Os dois países têm um passado comum e culturas parecidas. Por que há um sentimento anti-Rússia em parte da Ucrânia? Os ucranianos consideram terem sido colonizados pelos russos por décadas. Os colonizados do Império Russo eram ucranianos, estonianos, lituanos, poloneses, belarussos, cazaques.

A União Soviética colapsou, em parte, porque muitos ucranianos queriam ter um Estado independente, outros queriam mais autonomia de Moscou porque sentiam que poderiam ser mais ricos. Desde 1991 [independência do país], a Ucrânia se tornou mais independente, mais orientada ao Ocidente. A Rússia, por sua vez, se tornou mais autoritária.

Como é o relacionamento entre os povos? É muito forte. Especialmente no leste da Ucrânia, as pessoas costumam ter parentes do outro lado da fronteira, foram a Moscou estudar quando mais novas. Antes do conflito atual, havia uma disputa entre os ucranianos sobre quão perto deveriam estar da Rússia. Desde 2014 [quando protestos anti-Rússia eclodiram], por exemplo, várias pessoas deixaram de falar russo. Agora, com a guerra, até quem apoiava o estreitamento com Moscou mudou de ideia.

Professor Paul D'Anieri, especialista em Ucrânia e União Soviética, na redação da Folha
Paul D'Anieri, especialista em Ucrânia e União Soviética, na redação da Folha - Jardiel Carvalho - 4.out.22/Folhapress

O que a Revolução Maidan de 2014 teve de diferente da Laranja de 2004 para se tornar o gatilho da guerra hoje? Em 2004, Putin ainda estava consolidando seu poder e eliminando a oposição interna. Mas antes mesmo de 2014 era muito claro que os planos de Moscou para a Crimeia já estavam sendo elaborados. Os russos tinham infiltrados no Exército ucraniano, então, quando Maidan aconteceu, o Kremlin conseguiu organizar tudo rapidamente. No leste ucraniano, porém, lideranças locais barraram o avanço e, em Donetsk e Lugansk, a Rússia começou a fornecer dinheiro, armas e organização para os separatistas.

Putin sempre subestimou as aspirações de independência dos ucranianos. Acreditou que quem queria manter laços econômicos com Moscou queria se unir ao país. Seu grande bloqueio foi achar que, por falar russo, as pessoas se consideravam russas. Isso até deu certo em alguma medida na Belarus, mas na Ucrânia o oeste do país não apoiava isso.

Acha viável que a Rússia controle as quatro regiões anexadas, em referendos bastantes contestados? Os russos poderão ter muita dificuldade nesses territórios, lidando com insurgentes como aconteceu com os EUA no Afeganistão e no Iraque. Mas também há a possibilidade de a violência fazer com que as pessoas que não os apoiam abandonem essas regiões —e a Rússia precisará chamar cidadãos para ocupá-las, oferecendo terras e empregos.

Isso aconteceu após a Segunda Guerra; morreram tantos soldados de repúblicas soviéticas que Moscou precisou enviar cidadãos a essas regiões. Também na década de 1930, quando milhões morreram de fome no leste ucraniano [o Holodomor] —por isso há tantos russos étnicos em Donetsk.

Antes de ser eleito, Volodimir Zelenski disse que conversaria com Putin para encerrar a guerra no Donbass, mas o que aconteceu foi o contrário. Quais foram seus erros? Zelenski era uma pessoa ideológica e ingênua, que pensou que conseguiria ser presidente sem ser político. Era um projeto de oligarcas que queriam controlá-lo. Ele foi sincero ao acreditar que conseguiria a paz com a Rússia, ser menos hostil com o Kremlin —ao contrário do antecessor, Petro Porochenko. Mas depois percebeu que o único desejo de Putin era que Kiev aceitasse a interpretação russa sobre os Acordos de Minsk. Quando ele ensaiou aceitar isso, protestos eclodiram, e ele viu que a única saída era estreitar laços com o Ocidente.

O sr. avalia que o fim da guerra passa pela destituição de Putin? É difícil imaginar a paz com Putin no poder, mas não há razões para achar que uma eventual destituição traria a paz imediatamente. Ele poderia ser substituído por alguém pior ou mais fraco, que seja influenciado a manter a guerra. Veja o que ocorreu com [o ex-presidente dos EUA] Barack Obama: disse que queria acabar com a Guerra do Afeganistão, mas não conseguiu devido à política interna.

Não vejo o fim da guerra muito próximo. Isso só acontecerá se o Exército russo colapsar, mas, ainda assim, Putin não aceitaria sair da Ucrânia sem ter conquistado alguma região. Ao mesmo tempo, Kiev não aceitará o fim do conflito enquanto Moscou controlar partes do país.


Raio-X | Paul D'Anieri, 57

Nascido em Nova York, é autor de uma série de livros sobre a Ucrânia e a União Soviética. O mais recente, "Ukraine and Russia: From Civilized Divorce to Uncivil War", foi lançado em 2019. É professor da Universidade da Califórnia e vice-presidente da Associação Americana de Estudos Ucranianos, financiada pela por Harvard

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