Negacionistas das eleições nos EUA miram cargos responsáveis por regras eleitorais

Analistas temem impacto de republicanos que contestam sem provas vitória de Biden se tornarem secretários de Estado

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Washington

Em 6 de janeiro de 2021, um deputado estadual do Arizona, o republicano Mark Finchem, participou de uma marcha em Washington, capital dos Estados Unidos, contra a confirmação da vitória de Joe Biden sobre Donald Trump na eleição à Presidência. Parte do grupo invadiu o Congresso, e o episódio entrou para a história como o ataque mais grave à democracia americana na história recente do país.

Finchem não estava entre os invasores do Capitólio nem entrou na mira da Justiça, mas demonstrou em diversas oportunidades apoio à turba. Quando o ataque completou um ano, escreveu no Twitter que "a verdadeira rebelião" ocorreu quando democratas "fraudaram a eleição no Arizona com dezenas de milhares de votos roubados". Biden venceu no estado por pouco mais de 10 mil votos, 0,3% do total.

Agora, o negacionista do resultado de 2020 é o favorito na disputa para secretário de Estado do Arizona —cargo responsável, entre outras tarefas, por organizar localmente as eleições presidenciais. Finchem concorre nas midterms, como são chamadas as eleições de meio de mandato, em 8 de novembro.

O candidato republicano a secretário de Estado do Arizona, Mark Finchem, em comício na cidade de Mesa - Brian Snyder - 9.out.22/Reuters

O pleito vai renovar a Câmara, um terço do Senado e uma série de cargos estaduais por todo o país, incluindo alguns governadores, Legislativos locais, secretários de Estado e procuradores-gerais; nos EUA, os dois últimos postos são escolhidos, em âmbito regional em alguns estados, por meio do voto direto.

Assim como Finchem, dezenas de republicanos que afirmam acreditar na teoria infundada de que a vitória de Biden foi roubada concorrem a cargos que organizam os pleitos, o que pode ter impacto na próxima corrida presidencial. Em Nevada, o republicano Jim Marchant, também favorito a secretário de Estado, disse que, se ele estivesse no cargo em 2020, não teria confirmado a vitória local do hoje presidente.

Naquele ano, ele perdeu a eleição para deputado e entrou na Justiça alegando fraude e pedindo uma nova votação —foi derrotado outra vez. Finchem e Marchant têm a candidatura apoiada por Trump neste ano.

Levantamento da agência Associated Press apontou que um a cada três candidatos republicanos a cargos que monitoram e organizam as eleições partilham do que ficou conhecido como a "Grande Mentira", a ideia de que Biden perdeu a eleição. Nunca houve provas de fraude no pleito. Considerando todos os cargos aos quais nomes do partido concorrem, incluindo à Câmara e ao Senado, a proporção de quem levantou suspeitas sobre 2020 salta para 53%, segundo análise do jornal The Washington Post.

"Se contarmos cada voto legal, o [ex-]presidente Trump ganhou a eleição", escreveu no ano passado Diego Morales, hoje candidato a secretário de Estado em Indiana. Doug Mastriano, candidato republicano ao governo da Pensilvânia, também esteve no 6 de Janeiro. Por lá, é o governador quem nomeia o secretário de Estado, o que lhe dá certo poder na forma como a eleição é organizada. Em um estado-pêndulo como a Pensilvânia —em que a população não tem afinidade clara com democratas ou republicanos, podendo variar a depender do pleito—, a interferência pode custar a vitória de um presidente, segundo analistas.

O ex-presidente Donald Trump cumprimenta o candidato republicado ao governo da Pensilvânia, Doug Mastriano, em evento de campanha em Wilkes-Barre - Spencer Platt - 3.set.22/Getty Images/AFP

"É algo que está no radar e preocupa autoridades eleitorais e quem estuda a administração das eleições", diz Lisa Bryant, professora de ciência política da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno. O risco é esses negacionistas "se sentirem empoderados para tentar influenciar o resultado".

Ela afirma, porém, que seu lado otimista espera que, se esses candidatos assumirem os cargos, verão no dia a dia "que eles acreditaram em um mito baseado em desinformação".

Tal influência no resultado de 2024 só é passível de ocorrer porque o sistema eleitoral americano é muito diferente do brasileiro. Não há nos EUA uma autoridade federal que define as regras do pleito, como o TSE.

O papel da Comissão Federal de Eleições acaba restrito à fiscalização das contas de campanha, com o esquema de votação definido pelos estados —e podendo variar drasticamente de um lugar a outro.

Além disso, o pleito americano é, na prática, indireto; Hillary Clinton, por exemplo, bateu Trump no voto popular, mas não foi eleita em 2016, já que o sistema dos EUA é baseado no sistema de Colégio Eleitoral, proporcional à população de cada estado. Assim, vence quem conseguir ao menos 270 dos 538 votos dos delegados que representam os colégios —em tese, eles devem votar em linha com o pleito popular

Se os EUA já não têm mais as leis expressas de segregação que suprimiam o sufrágio de pessoas negras, ativistas pelo acesso ao voto denunciam formas sutis pelas quais é possível desestimular certos grupos a votar, o que lá não é obrigatório. São nessas regras que os secretários de Estado locais podem interferir.

Uma das maneiras é reduzir o número de urnas em bairros de minorias, para provocar filas e desestimular o voto —como ocorreu em Cincinnati, no estado de Ohio. No Alabama, em 2015, as autoridades fecharam escritórios do departamento de trânsito em regiões de maioria negra, dificultando a emissão da carteira de habilitação, principal documento usado na hora de votação.

Também é possível impor dificuldades ao voto antecipado, adotado na maioria dos estados porque as eleições nos EUA são feitas sempre em uma terça-feira, um dia útil —já há votações ocorrendo em quase metade deles. Neste caso, a tática de desestímulo se dá por mecanismos que tornam a prática mais burocrática, como a exigência de uma prova de que não será possível comparecer na urna no dia marcado.

A presença de negacionistas do pleito de 2020 nas midterms preocupa observadores também em funções como a de mesário voluntário, segundo Bryant, da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno.

"Não há nada que impeça essas pessoas de trabalharem na eleição. Se elas assediarem eleitores, por exemplo, podem ser presas, mas não há nada que as impeça de voltar ao posto na vez seguinte."


O que está em jogo nas midterms

435 vagas na Câmara de Representantes, hoje com maioria democrata de 8 votos

35 vagas do total de 100 no Senado, hoje dividido em 50 parlamentares para cada partido, mais o voto de minerva democrata

36 governos estaduais, sendo 20 deles hoje ocupados por republicanos

30 vagas de procurador-geral estadual

27 vagas de secretário de Estado estadual

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