Descrição de chapéu aborto América Latina

Documentário mostra caminhos para legalização do aborto na América Latina

Argentina e Colômbia, retratados em 'Verde-Esperanza', usaram vias diferentes para descriminalização

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Brasília

O consultório simples tem uma maca, coberta por papel, e paredes com a pintura gasta. De pé, o médico de jaleco branco e máscara faz perguntas a uma jovem. Usa anticoncepcional? "Sim". Quando foi a última menstruação? "7 de maio".

Poderia ser uma consulta ginecológica em um hospital público de qualquer país da América Latina, inclusive o Brasil, não fosse a conclusão. "Vou te pedir alguns exames urgentes para que a gente possa realizar a interrupção de forma segura", diz o médico, em espanhol. Em seguida, ele explica os passos para que a mulher faça um aborto legal.

Manifestação de mulheres em defesa do direito ao aborto em Bogotá, na Colômbia - Luisa González - 28.set.22/Reuters

Hoje, essa conversa só seria possível em três países sul-americanos: a Colômbia, o Uruguai e a Argentina. Foi filmada neste último a cena do documentário "Verde-Esperanza - Aborto Legal na América Latina". A capital, Buenos Aires, é um dos cenários do filme, produzido pela Gênero e Número em parceria com a produtora Filmes da Fonte e lançado no segundo semestre deste ano.

Ele teve exibições em São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis no mês passado, e uma campanha de financiamento coletivo foi criada para levá-lo a outras capitais.

"A cena do atendimento é o ponto alto do filme, porque fica nítida a dignidade com que as mulheres são atendidas, a naturalidade com que os médicos as recebem para fazer o procedimento, como se fosse qualquer outro", diz a diretora, Maria Lutterbach.

"Verde-Esperanza" escolhe mostrar dois casos mais recentes de descriminalização do aborto sem condicionantes. Na América do Sul, o procedimento é legal desde 2012 no Uruguai e, no Chile, houve avanço na legislação —até 2017, ele era proibido inclusive em casos de estupro e risco para a vida da gestante—, mas ainda há condicionantes; a proposta de Constituição derrotada em referendo em setembro previa o direito.

Já na Argentina e na Colômbia, as mulheres não precisam dar um motivo para interromper a gravidez. Na cena em que o médico explica à gestante portenha que ela pode escolher entre uma aspiração uterina e o uso do misoprostol, medicamento abortivo seguro que pode ser ingerido em casa, em nenhum momento ele pergunta o porquê da decisão.

As vias que levaram os dois países à descriminalização da prática, porém, são distintas. Na Argentina, o movimento popular apelidado de "Marea Verde" (maré verde), referência à cor dos lenços-símbolo do grupo, pressionou o Congresso pela aprovação, em dezembro de 2020, de uma lei que autoriza a interrupção até 14 semanas de gestação.

Na Colômbia, o caminho foi a Suprema Corte. Em fevereiro deste ano, decisão do tribunal passou a permitir o procedimento até 24 semanas.

É um caminho similar a este que ativistas brasileiras vislumbram. "A gente já viveu outras promessas de possíveis avanços. Tivemos a apresentação de um projeto de lei [pela descriminalização], mas o aumento do conservadorismo sobretudo no Congresso o tornou inviável", diz Laura Molinari, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta e uma das entrevistadas do filme.

A avaliação é que, hoje, o cenário mais provável de uma descriminalização passaria pelo Supremo Tribunal Federal. Tramita na corte a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, sob relatoria da atual presidente, Rosa Weber. A ação foi apresentada pelo PSOL em 2017 e pede a descriminalização do aborto durante o primeiro trimestre de gestação.

Para Molinari, porém, um dos acertos de "Verde-Esperanza" é não apresentar uma fórmula pronta, um passo a passo da descriminalização. "O documentário traz muito as restrições no Brasil e o impacto delas, mas tem um elemento também de apontar caminhos possíveis, sem impor modelos."

A diretora olha ainda para o estigma sobre o aborto —mesmo o legalizado. Lutterbach diz que a questão surgiu principalmente na Colômbia. "A gente ouve relatos de que há hospitais e clínicas que não querem se ver relacionados com a questão, apesar de estar claro na lei", diz. Na Argentina, ela enxerga um cenário mais consolidado, em que há dissonância, mas o procedimento é tratado de forma mais naturalizada.

Uma das diferenças do filme é o enfoque em avanços na descriminalização. Documentários recentes sobre o tema, como o americano "Roe x Wade: Direitos das Mulheres nos EUA" (2018), disponível na Netflix, costumam focar as ameaças ao direito; segundo Lutterbach, a ideia de fazer o contrário foi consciente.

"A discussão sobre o aborto foi muito capturada pela ultradireita. O movimento feminista e todas as pessoas envolvidas nessa causa tiveram basicamente que lutar contra retrocessos", diz. "Então era estratégico mostrar países onde a lei tinha conseguido avançar, para servir de inspiração para a luta."

Se os EUA enfrentam uma batalha entre democratas e republicanos, que se digladiam em âmbito estadual depois da reversão da jurisprudência Roe vs. Wade pela Suprema Corte —o que derrubou o direito constitucional à interrupção da gravidez—, países latino-americanos têm caminhando rumo à flexibilização.

Além de Argentina e Colômbia, o México descriminalizou o procedimento recentemente. Em setembro de 2021, a Suprema Corte do país entendeu que é inconstitucional punir mulheres que interrompem a gestação. "É importante olhar para a região com a generosidade de que estamos fazendo um monte de coisa e avançando", diz Molinari.

Verde-Esperanza - Aborto Legal na América Latina

  • Produção Brasil, 2022. Gênero e Número e Filmes da Fonte
  • Direção Maria Lutterbach
  • Duração 40 min.
  • Fin. coletivo em catarse.me/generonumero
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