Qatargate expõe fragilidades do Parlamento Europeu e arrisca credibilidade da UE

Escândalo que resultou na cassação de uma vice-presidente da Casa não encontra precedentes na história do bloco

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Milão

O escândalo de corrupção mais flagrante, sem precedentes e chocante que atinge uma instituição da União Europeia. Os adjetivos ilustram a dimensão do caso investigado por autoridades belgas, segundo as quais um grupo de pessoas com funções e trânsito dentro do Parlamento Europeu teria recebido dinheiro e favores para defender interesses do Qatar —uma monarquia absolutista que busca, também com a realização da Copa do Mundo, melhorar sua posição internacional.

Apelidado de Qatargate, o episódio expõe fragilidades estruturais da UE para lidar com a atuação de lobistas e de seus servidores, o que contribui para minar a credibilidade do bloco, segundo analistas.

Desde a última sexta-feira (9), quando o escândalo veio à tona, buscas foram realizadas em dezenas de casas e escritórios em Bruxelas. Mais de € 1 milhão foi encontrado em notas, segundo a imprensa belga, e quatro pessoas foram presas, incluindo uma das vice-presidentes do Parlamento Europeu, Eva Kaili.

A eurodeputada grega Eva Kaili em reunião com o ministro do Trabalho do Qatar, Ali bin Samikh Al Marri, em encontro no final de outubro - Ministério do Trabalho do Qatar no Twitter - 31.out.22/Reuters

A eurodeputada grega perdeu o cargo nesta terça (13) e já tinha sido afastada de seu partido e do grupo parlamentar a que pertencia. Nenhum dos suspeitos foi formalmente identificado, mas os nomes foram vazados à imprensa. Eles seriam o companheiro de Kaili, que atua como assessor de outro eurodeputado, um ex-parlamentar e o responsável por uma ONG —todos italianos. Os quatro são acusados de corrupção, lavagem de dinheiro e filiação a uma organização criminosa.

Segundo a Transparência Internacional Europeia, se confirmadas as suspeitas, o caso será o mais flagrante de corrupção da Casa, mas está longe de representar um incidente isolado. "Ao longo de décadas o Parlamento permitiu o desenvolvimento de uma cultura de impunidade, com uma combinação de regras e controles negligentes", declarou seu diretor, Michiel van Hulten, ele próprio ex-eurodeputado.

Para Alberto Alemanno, professor de direito da União Europeia na HEC Paris e fundador da Good Lobby, ONG que atua em defesa da transparência, esse é o escândalo de corrupção mais chocante da história do bloco europeu. "A natureza e a escala fazem com que esse episódio seja muito diferente."

Segundo ele, casos anteriores, ainda que envolvessem eurodeputados recebendo propinas de corporações —como o austríaco Ernst Strasser, condenado a quatro anos de prisão em 2013— tiveram um raio contido e isolado. "Agora, estamos falando de um nível completamente diferente de corrupção, envolvendo oficiais influentes do alto escalão pagos para limpar a imagem de um outro país. É algo sem precedentes."

Em novembro, poucos dias antes do início da Copa do Qatar, a eurodeputada francesa Manon Aubry já havia chamado a atenção para parlamentares que estavam "retransmitindo" argumentos do país-sede. À época, o Parlamento Europeu aprovou resolução que lamentava a falta de transparência sobre a morte de trabalhadores imigrantes e as suspeitas de corrupção no processo de escolha do país como sede, no âmbito da Fifa. Citava também abusos contra a comunidade LGBTQIA+ e as mulheres.

Na véspera da votação, Eva Kaili fez uma defesa enfática do Qatar no plenário. "A Copa é a prova de como a diplomacia esportiva pode obter a transformação histórica de um país com reformas que inspiraram o mundo árabe", disse. Seu advogado negou a uma emissora de TV grega que ela tenha recebido propina. Doha também refuta envolvimento nos casos investigados.

Um dos projetos em tramitação no Parlamento Europeu é a isenção de visto para cidadãos do Qatar na UE por até 90 dias, seja a turismo, seja a negócios —como acontece hoje com brasileiros. Após a revelação do caso, o processo foi devolvido à fase de comissões, onde já havia sido aprovado no começo deste mês.

"O Parlamento Europeu é o elo mais fraco no sistema de integridade europeu. É a instituição que tem as regras e aplicações mais relaxadas, o que cria uma cultura de impunidade que torna possível esse tipo de má conduta", afirma Alemanno.

A própria composição plural o torna um alvo especial para a atuação de lobistas. São 705 membros que representam os 27 países do bloco, falando 24 idiomas, e que, depois de serem eleitos nacionalmente, vão a Estrasburgo e Bruxelas fazer política. A Casa não possui um órgão de ética independente, capaz de monitorar e punir casos que ferem o código de conduta —o qual eurodeputados devem se comprometer a respeitar, mas cujo controle é realizado pelos próprios colegas.

Para Alemanno, a reforma mais urgente é a necessidade de proibir que um parlamentar possa desenvolver atividades profissionais simultâneas ao mandato. Segundo levantamento de 2021 da Transparência Internacional, 27% dos membros que entraram no órgão em 2019 tinham atividades remuneradas —de escritórios de advocacia a participação em conselhos de organizações. "Se isso for banido, como o é na maioria dos Parlamentos do mundo, esse ecossistema de comportamento ilícito e zonas cinzentas diminui."

Para a Transparência Internacional, a criação de um órgão de ética independente para a União Europeia é uma prioridade. O assunto integrou as propostas da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, quando chegou ao cargo, em 2019, mas pouco avançou. "Depois de quatro anos, a Comissão Europeia não está mostrando muito interesse nisso. Estamos praticamente a um ano das próximas eleições [em 2024] e ainda não há uma proposta a ser discutida da parte da Comissão", diz a entidade.

A investigação das autoridades belgas, que teria começado em julho deste ano e atinge seu ponto máximo às vésperas da final da Copa, é mais um fator negativo para a UE, que tenta manter sua unidade para lidar com a Guerra da Ucrânia, a crise energética e alta do custo de vida. O caso passou a ser explorado por críticos do bloco, como o ex-parlamentar britânico Nigel Farage, um dos maiores defensores do brexit. "Sempre soubemos que a UE era corrupta", disse.

Outro que tripudiou foi o premiê da Hungria, Viktor Orbán, que tem sido pressionado pelo bloco a reforçar medidas internas de combate à corrupção. No Twitter, ele publicou uma imagem com a frase: "E eles diziam que o Parlamento Europeu estava profundamente preocupado com a corrupção na Hungria".

O Qatargate tem duas consequências imediatas, segundo Alemanno. "A primeira é desgastar a confiança que os cidadãos europeus têm nas instituições. Não apenas o Parlamento Europeu, mas a UE inteira sai prejudicada. A outra é o estrago internacional. O bloco sai enfraquecido porque é menos digno de confiança ao tentar promover a democracia e o princípio do Estado de Direito."

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