Portugal adota câmeras para policiais em meio a preocupação com radicalização de forças

Forças do país acumulam denúncias de condutas violentas e discriminatórias, com alinhamento a discurso de ultradireita

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Lisboa

Após quase um ano de espera, o governo de Portugal publicou na última semana a lei que define as regras de utilização das câmeras corporais em agentes das forças policiais do país. A regulamentação era o passo que faltava para o uso efetivo desses equipamentos nas operações, que já havia sido aprovado pelo Parlamento —a lei está em vigor desde janeiro de 2022.

Como a aquisição dos aparelhos de gravação ainda está em curso, porém, a implementação não será imediata. A medida será adotada, em parte, em resposta a apontamentos feitos por diversas entidades nos últimos anos, incluindo o Conselho da Europa, de condutas violentas e discriminatórias para minorias étnico-raciais nas polícias lusas.

Segundo o Ministério da Administração Interna, responsável pelo setor em Portugal, o uso das câmeras vai "garantir condições de transparência e de salvaguarda do exercício legítimo, proporcional e adequado da autoridade democrática por parte dos elementos das forças de segurança", contribuindo para "aumentar os níveis de confiança" nas polícias.

Policiais tentam conter manifestantes em protesto de ambientalistas em Lisboa - Pedro Nunes - 12.nov.22/Reuters

As regras valerão para a GNR (Guarda Nacional Republicana), que atua nas áreas rurais, e a PSP (Polícia de Segurança Pública), que age no perímetro urbano. A captação de sons e imagens estará restrita a casos de intervenção policial e deve ocorrer "sempre que a natureza do serviço e as circunstâncias o permitam", mediante um aviso "claramente perceptível".

A lei determina ainda que as gravações serão obrigatórias quando houver "uso de força pública sobre qualquer cidadão", o que abrange procedimentos de restrição física, como colocação de algemas, e uso pelos agentes de quaisquer meios coercitivos, "especialmente arma de fogo".

Os registros em vídeo também serão exigidos em caso de "emissão de ordens a suspeitos relativas à cessação de comportamentos ilegais ou agressivos e à adoção de posições de segurança". O texto prevê que as gravações podem acontecer, sem detalhar obrigatoriedade, em outras situações, incluindo a prática de ilícito criminal, agressão contra o próprio agente policial ou contra terceiros, desobediência e resistência a ordens e tentativa de impedir a fuga de suspeitos.

O uso de câmeras para registrar ações policiais já está em vigor em diferentes graus em outros países europeus, como Reino Unido, França e Itália. Nos EUA, as gravações já são difundidas entre as forças policiais de vários estados.

No Brasil, os equipamentos já foram adotados em locais como São Paulo e Rio de Janeiro, não sem serem alvo de longa discussão —o novo secretário estadual de Segurança paulista, capitão Derrite, por exemplo, falou em rever o programa, a despeito de os números mostrarem uma diminuição na letalidade policial e na de agentes em serviço.

No ano passado, pesquisa Datafolha apontou que mais de 90% da população em três estados (SP, Minas Gerais e Rio de Janeiro) aprova o uso das câmeras.

Em Portugal, como no Brasil, relatos de má conduta em abordagens policiais —uma das motivações para desenvolver o programa— têm sido crescentes nos últimos anos. Em dezembro de 2021, uma delegação de peritos do grupo de trabalho das Nações Unidas sobre Pessoas de Ascendência Africana abordou a questão em uma visita ao país. A presidente do grupo, a americana Dominique Day, chegou a afirmar que estava "surpreendida com o número e a dimensão de relatos credíveis sobre brutalidade policial" no país.

Em novembro passado, o tema voltou a ter grande destaque após a publicação de uma longa investigação jornalística que revelou que quase 600 membros das forças de segurança realizaram publicações em grupos nas redes sociais contendo mensagens discriminatórias e ameaças.

Políticos, sobretudo mulheres vinculadas a partidos de esquerda, e minorias foram alvos constantes das ofensas. Postagens com conteúdo racista e xenofóbico tiveram como alvo inclusive o primeiro-ministro, António Costa (Partido Socialista), que é filho de um indiano da região de Goa.

Chamado ao Parlamento para prestar explicações sobre a atuação dos agentes, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, afirmou que a "esmagadora maioria" dos cerca de 40 mil policiais de Portugal "zela todos os dias pela defesa dos valores constitucionais e pelo Estado de Direito". Na mesma audiência, ele revelou que, entre 2019 e novembro de 2022, 107 agentes da PSP e da GNR foram "demitidos, aposentados compulsoriamente e separados do serviço" por violações.

O movimento coincidiu com certo alinhamento das forças ao discurso da emergente ultradireita, que se tornou uma força política mais relevante inclusive no Parlamento, onde é liderada por André Ventura, do partido Chega —a legenda votou a favor do projeto das câmeras.

As duas polícias determinaram apurações sobre as denúncias, e a Inspeção Geral da Administração Interna também está investigando o caso. A entidade é a responsável pela implementação do plano de prevenção de manifestações de discriminação nas forças e nos serviços de segurança. Em vigor desde março de 2021, o projeto quer incentivar o recrutamento de mais mulheres e de pessoas de diferentes origens étnico-raciais, além de criar agentes especializados em direitos humanos em todas as polícias do país.

No mesmo 2021, período com os dados mais recentes disponíveis, foram registradas 1.174 queixas contra a atuação das forças de segurança em Portugal, o que representa o valor mais elevado dos últimos cinco anos.

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