Russos fazem 'luta das flores' como forma de protestar contra Guerra da Ucrânia

Manifestantes depositam ramalhetes em estátua de poeta ucraniana em Moscou para homenagear civis mortos

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Valerie Hopkins Nanna Heitmann
Moscou | The New York Times

Ônibus da polícia parecem onipresentes em Moscou desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. Eles vigiam a maior parte do centro, inclusive a estátua de uma das mais célebres poetas ucranianas, que se tornou o local preferido para uma demonstração silenciosa de sentimento contra a guerra.

Desde que um míssil russo atingiu um prédio residencial em Dnipro, no dia 14, matando 46 pessoas e ferindo outras 80, os moscovitas depositam flores, bichos de pelúcia e fotos do edifício destruído aos pés da estátua de Lesia Ukrainka —poeta e dramaturga que viveu nas últimas décadas do Império Russo.

Russos deixam flores em estátua de poeta ucraniana em Moscou em protesto silencioso contra a guerra
Russos deixam flores em estátua de poeta ucraniana em Moscou em protesto silencioso contra a guerra - Nanna Heitmann - 19.jan.23/The New York Times

O ritual se tornou uma expressão de tristeza, vergonha e oposição. Mas, em intervalos regulares, autoridades removem as lembranças.

"Na Rússia contemporânea, é uma batalha silenciosa", diz Tatiana Krupina, 28, química que foi com um pequeno grupo de amigos depositar flores na semana passada. Gestos assim são o que se pode passar por uma espécie de protesto na Rússia em janeiro de 2023, 11 meses após a invasão.

A "luta das flores" é um dos primeiros atos públicos em grande escala desde setembro, nos dias seguintes ao anúncio do presidente Vladimir Putin de que centenas de milhares de homens seriam convocados para lutar. O país impôs penalidades para quem criticar a guerra ou mesmo chamá-la de guerra, então, para muitos, isso parece uma rara oportunidade de manifestar dissidência sem ser preso.

Para os russos antigoverno que permanecem no país, as flores lembram que eles não estão sozinhos na oposição ao conflito, mesmo enquanto a propaganda fica cada vez mais agressiva e as letras "Z" e "V", que se tornaram símbolos pró-guerra, são gravadas em prédios.

Para os que fugiram devido à perseguição, possível recrutamento ou recusa a pagar impostos que alimentariam a máquina de guerra, o memorial é um sinal de que no país ainda há pessoas corajosas o suficiente para protestar. "Não é só uma maneira de mostrar à população da Ucrânia que há pessoas na Rússia que não toleram o que está acontecendo; mostra que eles não estão sozinhos", diz Alexander Pliuchev, jornalista russo com muitos seguidores no YouTube.

Mas até o gesto simbólico tem potenciais consequências. Pelo menos sete pessoas foram detidas, segundo um jornalista do New York Times que testemunhou os episódios na semana passada. Quatro foram levadas pela polícia após colocarem flores no local.

A polícia tentou impedir que pessoas fotografassem o memorial e disse a outras para deletarem as imagens. Mas elas continuam chegando, procurando um momento em que não haja muitos em torno do monumento —para que não pareça uma reunião pública ilegal— e discretamente colocando suas flores.

"Não aguento mais; quero mostrar minha opinião", disse a advogada Ekaterina Varenik, 26, no sábado (21), depois de depositar um ramalhete na estátua. Ela contou que protestou pela última vez quando o político de oposição Alexei Navalni foi preso, há dois anos, e que ficou em casa quando milhares fizeram atos contra a mobilização de guerra. "Mas a cada dia fica pior, e cada vez mais rígida [a repressão]."

Por mais de meia hora Varenik ficou em frente à estátua com um pôster que dizia "Ucrânia: não são nossos inimigos, são nossos irmãos". Ela foi detida logo depois e pode pegar até 15 dias de prisão.

Alguns russos proeminentes minimizam os atos. "Levar flores para um monumento não exige coragem nem dinheiro", disse Dmitri L. Bikov, poeta e escritor crítico do governo que vive no exílio, em um debate transmitido no YouTube. "É esteticamente bonito, mas inútil", completou ele, vítima de uma tentativa de envenenamento em 2019 com uma substância semelhante à usada em Navalni. "Há só um efeito positivo: talvez alguém descubra quem é Lesia Ukrainka –uma grande poeta– e leia sua obra."

A estátua tem sido palco de altercações com nacionalistas pró-guerra, que denunciam os manifestantes e os acusam de desacreditar os militares russos —o que agora é crime no país.

Flores e ursos de pelúcia depositados no local, em Moscou, em memória de civis mortos por ataques russos na Ucrânia
Flores e ursos de pelúcia depositados no local, em Moscou, em memória de civis mortos por ataques russos na Ucrânia - Nanna Heitmann - 19.jan.23/The New York Times

A repressão do Kremlin à oposição e aos atos se acelerou após a invasão da Ucrânia. Cerca de 20 mil manifestantes foram detidos desde o início da guerra, de acordo com a OVD-Info.

Ilia Iachin, vereador de Moscou, foi condenado a oito anos e meio de prisão por falar sobre as atrocidades russas em Butcha. Um estudante de 19 anos da cidade de Arkhangelsk pode pegar até dez anos de prisão por postagens nas redes sociais criticando a guerra. Nesse contexto, desafiar a polícia com flores pode exigir certo grau de coragem, mas também tem um custo mental.

"Sei que a qualquer momento a polícia pode entrar em minha casa e me prender", diz Maksim Chatalov, 36, ex-comissário de bordo que, segundo disse, foi demitido por sua posição antiguerra. Ele se tornou amigo de um círculo fechado de ativistas depois de ser jogado em um "avtozak" (van da polícia) após um protesto em abril. Durante o verão e o outono do hemisfério Norte, eles protestaram contra a mobilização, pintaram mensagens antiguerra pela cidade com giz e colocaram flores em outros memoriais.

Chatalov e sua amiga Anna Saifitdinova, 34, levaram ramalhetes para a estátua em uma noite recente. Ela tinha quatro rosas brancas —os russos sempre dão um número par de flores como homenagem aos mortos. Chatalov disse que planeja deixar a Rússia porque temia ser preso.

"Acredito que eu seria mais útil em outro país do que ficar aqui sem emprego", diz. "O que vou conseguir quando estiver sentado num campo de prisioneiros? Serei espancado constantemente ou mantido numa gaiola o tempo todo, como Navalni? Ou alguém do Grupo Wagner virá tentar me recrutar para lutar na Ucrânia com ameaças se eu não me alistar? Eles vão me levar ao ponto de eu me matar."

Ainda assim, alguns que se arriscam à prisão insistem em mostrar resistência. "Moscou é uma cidade enorme, e todos estão quietos", disse Varenik antes de ser detida por seu cartaz. "Quero mostrar ao mundo que não devemos ficar calados. Permitimos tudo isso com o nosso silêncio."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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