Casal ucraniano se alistou junto no Exército, dividiu trincheira e morreu nela

Sem experiência militar, Taras e Olha Melster correram para se apresentar como voluntários quando guerra explodiu

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Jeffrey Gettleman
Kropivnitski (Ucrânia) | The New York Times

Todos que conheciam Taras e Olha Melster ficaram surpresos quando eles se alistaram numa unidade de voluntários ucranianos no primeiro dia da Guerra da Ucrânia. Eles não tinham experiência militar alguma. Eram profissionais que estavam construindo seus próprios negócios. Estavam tentando ter filhos.

"Fiquei com medo na mesma hora", contou a mãe de Taras, Liudmila Shestakova, que tinha uma relação de muito afeto com o filho e a nora. "Sabia o que a guerra significa. Significa morte. A guerra nunca traz nada de bom." Mas Olha fez pouco-caso. "Vamos ficar bem", disse ela a todo mundo. "Não se preocupem."

Liudmila Shestakova segura foto de infância do filho, Taras Melster, e da nora, Olha, em Kropivnitski, na Ucrânia
Liudmila Shestakova segura foto de infância do filho, Taras Melster, e da nora, Olha, em Kropivnitski, na Ucrânia - Ivor Prickett/The New York Times

Era sempre o que Olha dizia. Não se preocupem. Taras e Olha eram marido e mulher de classe média que dividiram uma trincheira e morreram nela. O que aconteceu com eles é um exemplo do buraco aberto na sociedade ucraniana que se aprofunda mais a cada dia que passa. Nenhum canto desse país foi poupado –nem mesmo lugares tranquilos como Kropivnitski, onde Taras e Olha estavam mapeando seu futuro.

Os golpes aqui são como ferimentos internos. Superficialmente, Kropivnitski, cidade de 230 mil habitantes cercada de campos de trigo, parece intocada. Não há janelas com tapumes, prédios detonados ou soldados atrás de sacos de areia. "Nem os russos se interessam por nós", disse uma mulher, brincando.

Mas todos aqui parecem conhecer alguém que morreu. É como se um nervo comprido e fino ligasse essa cidade no centro da Ucrânia e tantas outras como ela ao sangue derramado na inflamada linha de frente.

O cemitério militar local não para de crescer. Quase todo dia um novo caixão é colocado na terra preta e fria. Cada sepultura é assinalada por um pequeno monte, uma cruz, uma bandeira e uma foto. A galeria de rostos olha as pessoas em silêncio. São dezenas de rapazes e uma moça abatidos na flor da idade.

Taras e Olha se conheceram quando tinham 8 anos de idade. Faziam parte do pequeno grupo judaico de Kropivnitski, remanescente de uma comunidade antes dinâmica que foi massacrada na Segunda Guerra.

Estudaram na mesma escola judaica, até ela ser fechada por não ter alunos suficientes, e mais tarde participaram de atos ambientais. Em uma foto ainda adolescentes, Taras está sorridente, com um lenço verde no pescoço, enquanto Olha encara a câmera com expressão intensa em seus olhos escuros.

Ainda em Kropivnitski, Taras estudou engenharia elétrica, e Olha, arte. Entraram e saíram de relações com outras pessoas. Seis anos e meio atrás, quando ambos tinham 25 anos, casaram-se. Quando a guerra começou, viviam num apartamento minúsculo com um cachorro enorme, Mika. Taras trabalhava montando sites. Olha havia criado um negócio dando aulas online de decoração de biscoitos de gengibre.

Como muitos outros ucranianos dominados por um senso de dever cívico e um medo de que os russos estivessem vindo em sua direção, correram para se apresentar como voluntários. Mas ninguém queria aceitar Olha como voluntária. Então ela se alistou como cozinheira numa unidade diferente da de Taras na Força de Defesa Territorial, uma rede de voluntários que prestava assistência ao esforço de guerra.

Taras pensou que trabalharia nos bastidores, usando suas habilidades digitais. Um amigo que se alistou com eles, o motorista de ônibus Vitalii Bilous, comentou: "Nunca imaginei que teríamos que ir ao front".

Eles não foram, inicialmente. Taras comandou um posto de controle na cidade –desnecessário, porque os russos nunca chegaram perto de Kropivnitski, situada numa região agrícola distante dos principais alvos estratégicos. Olha trabalhou numa cozinha gigantesca, preparando rolinhos de repolho recheados.

No final de maio, Taras recebeu novas ordens. Sua unidade seria deslocada para o Donbass, a região oriental do país onde russos e ucranianos estavam massacrando uns aos outros numa guerra de trincheiras à moda da Primeira Guerra –e continuam a fazê-lo hoje. Olha pediu para ir também, contaram amigos. Todos tentaram dissuadi-la –sua mãe, sua sogra, o comandante da unidade, o próprio Taras.

"Fiquei realmente preocupada com Olha", disse Liudmila. "Se ela fosse, seria mais difícil para Taras. Ele teria que protegê-la. Mas eu não sabia como fazê-la desistir." Os dois receberam um pouco de treinamento com armas de fogo –por um dia e meio, disse Bilous. Então foram enviados para uma floresta de pinheiros perto da cidade de Sievierodonetsk, onde deveriam integrar a segunda ou mesmo a terceira linha de defesa, disse o comandante da unidade, o capitão Volodimir Kanchuk. Devido ao número muito alto de soldados profissionais mortos, eles foram empurrados até a linha de frente, a chamada "linha zero".

Oficiais ucranianos não revelaram que parte da força de combate nacional, composta de cerca de 1 milhão de combatentes, é feita de pessoas sem experiência prévia. Há estimativas de que seria até 40% ou 50%.

"Este é o Exército ucraniano", disse Oleksandr Mikhed, escritor que perdeu um bom amigo, um editor de cinema renomado que se alistou. "Começou em 2014, com a primeira onda de voluntários que foram do Maidan para o front", afirmou, aludindo aos protestos que começaram na praça Maidan, em Kiev. "Somos uma combinação de Forças Armadas e a energia nova dos que vêm pela vontade de seus corações."

Olha claramente tinha essa vontade do coração. Ela deveria ficar na sede da companhia, numa serraria abandonada, dois quilômetros atrás da linha de frente. Mas a todo momento ela se esgueirava até a linha de frente, com sua armadura, sua arma e seu saco de dormir. "A gente a mandava embora das trincheiras, mas ela não parava de tentar ficar com seu marido", disse Kanchuk.

No dia 21 de junho, o primeiro dia do verão no Hemisfério Norte, o céu acima de Sievierodonetsk estava azul. Olha chegou às 10h e foi ficar com Taras e Bilous na trincheira. Os russos dispararam alguns morteiros, como sempre. Todos foram se proteger. Mas o bombardeio se intensificou. Árvores em volta deles foram despedaçadas, contou Bilous. O cheiro de fumaça e dos pinheiros rachados encheu a floresta.

Bilous não se lembra bem do que aconteceu a seguir. Disse ter ouvido uma explosão ensurdecedora e sentiu a terra se erguendo em volta. Ele se sentiu leve, sem peso. Sentiu sangue grudado em seu rosto. Não sabia se era dele. Alguma coisa estava deitada em cima dele na trincheira. Ele abriu espaço no meio da terra. Encontrou os corpos de Taras e Olha lado a lado, despedaçados. E desmaiou.

Mesmo hoje, oito meses mais tarde, as pessoas em Kropivnitski ainda procuram a mãe de Taras, que dirige uma pequena entidade ambiental, para apresentar suas condolências. Isso a deixa incomodada.

"Você precisa entender: todo o mundo neste país está lutando", disse ela. "Temos seis pessoas no meu escritório, e todas têm algum ente querido na linha de frente. É terrível. É mais que terrível."

Taras era filho único. Olha era como sua segunda filha. Numa tarde recente, o pai de Taras, Yurii Melster, sentou-se ao lado do túmulo de seu filho e dividiu um cigarro. Acendeu um cigarro e o colocou sobre o túmulo. Depois acendeu outro e o fumou. Quando a cinza do cigarro ficou comprida e os últimos raios de luz cor de uísque passaram entre as árvores, Yurii pediu para Taras perdoá-lo.

"Deveria ter me esforçado mais para impedir essa guerra", disse. "Todos deveríamos." Também Liudmila ainda conversa com o filho. Sente necessidade de manter Taras e Olha por perto. Ela se permite sonhar que eles estão voltando. Pensa no que se perdeu e diz: "Como vamos reconstruir nosso país? Como vamos conseguir, sem toda essa gente?". E nunca vai ao cemitério. Diz que, se for, nunca mais sairá de lá.

Tradução de Clara Allain

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