Como Biden manteve viagem surpresa à Ucrânia em segredo

Equipe de presidente americano chegou a mentir a jornalistas sobre agenda em Washington

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Peter Baker Michael D. Shear
Washington | The New York Times

O trem atravessou a paisagem rural ucraniana pela noite. Pouca coisa era visível pela janela –apenas uma ou outra iluminação de rua ou sombras de prédios. Mas quem viu o trem passar tampouco conseguiu enxergar quem estava nele, e, se tivesse parado para especular, dificilmente teria adivinhado.

Viajavam no trem anônimo o presidente americano, Joe Biden, e uma equipe reduzida de assessores, junto a agentes do Serviço Secreto. Estavam numa missão secreta para visitar Kiev. Para o resto do mundo, ele estava em Washington, passando a noite em casa após jantar num restaurante italiano com sua esposa.

O presidente dos EUA, Joe Biden, em estação de trem após fazer uma visita surpresa a Kiev, na Ucrânia
O presidente dos EUA, Joe Biden, em estação de trem após fazer uma visita surpresa a Kiev, na Ucrânia - Evan Vucci - 20.fev.23/AFP

Na verdade, o democrata fazia uma viagem diferente de qualquer outra já empreendida por um presidente americano nos tempos modernos. Numa iniciativa ousada que pretendia mostrar a determinação dos EUA de ajudar a Ucrânia a derrotar as forças russas que a invadiram um ano atrás, Biden viajou a Kiev em segredo para encontrar o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, e prometer ainda mais armas ao país.

A visita produziu uma imagem indelével dos dois presidentes caminhando para um memorial aos soldados tombados, em plena luz do dia, enquanto tocava uma sirene de aviso de ataque aéreo, uma demonstração de desafio a Moscou que foi prontamente transmitida para todo o mundo.

Nunca na vida de Biden um presidente americano havia ido a uma zona de guerra que não estivesse sob o controle de forças americanas, muito menos num trem que levaria 9,5 horas para chegar a seu destino.

Durante essas horas, Biden ficou potencialmente exposto a circunstâncias que fugiriam do controle da equipe de segurança que normalmente é mobilizada para proteger um líder americano de qualquer perigo físico concebível e minimizar o tempo que ele passa fora de um abrigo reforçado.

Em boa parte do último ano, a maioria das pessoas que cercam o presidente resistiu à ideia de fazer essa viagem, supondo que seria muito arriscada. Mas com as tropas ucranianas se saindo muito melhor do que se previa no início e outros líderes americanos e europeus já tendo feito essa visita, Biden e sua equipe apostaram que ele conseguiria ir a Kiev e sair da cidade em segurança.

"Claro que uma empreitada como esta teve um risco e ainda tem", disse o assessor de segurança nacional de Biden, Jake Sullivan, a jornalistas, por telefone, do trem que partiu de Kiev para retornar à Polônia. "E Biden considerou importante fazer esta viagem devido à conjuntura crítica em que nos encontramos no momento em que se aproxima o primeiro aniversário da invasão russa da Ucrânia em escala total."

Foi uma viagem longa e surreal. Não era assim que Biden estava acostumado a ver a Ucrânia. Ele visitou o país seis vezes quando era vice-presidente —três dessas vezes em um período de seis meses—, chegando num jato americano, olhando da janela durante o dia para ter uma vista aérea de Kiev. Desta vez ele entrou sorrateiramente, na sombra da noite, e chegou pouco após o amanhecer.

Assessores contaram que a viagem vinha sendo programada havia meses e que só algumas pessoas de confiança na Casa Branca, no Pentágono, no Serviço Secreto e em agências de inteligência realizaram as avaliações de risco. Segundo um assessor, nas reuniões, o democrata enfocou o risco que sua visita poderia criar para outros, não para ele próprio. A decisão acabou sendo tomada na sexta (17), quando ele se reuniu com um punhado de assessores no Salão Oval e consultou outros pelo telefone. Ele optou por ir.

Já estava prevista a ida à Polônia para o primeiro aniversário da invasão russa. Quando presidentes fazem escalas secretas em locais incertos, as visitas em geral são acrescentadas após uma viagem já marcada. Neste caso, a Casa Branca decidiu que a viagem secreta viria primeiro, para conservá-la em sigilo.

Biden desempenhou seu papel na manobra. Na noite de sábado, ele e Jill Biden foram à missa na Universidade Georgetown, depois passaram pelo Museu Nacional de História Americana e, para encerrar a noite, jantaram no Red Hen, onde comeram o rigatoni visto como o melhor da capital americana. Quando voltaram à Casa Branca, a maioria das pessoas poderia ter imaginado que seu dia estava encerrado.

Mas algumas horas depois da meia-noite Biden saiu da mansão discretamente e foi levado à base aérea Andrews, nos subúrbios de Maryland, onde o aguardava um grupo reduzido de assessores, agentes de segurança, equipe médica, um fotógrafo da Casa Branca e dois jornalistas. Os dois jornalistas –Sabrina Siddiqui, do Wall Street Journal, e Evan Vucci, da Associated Press— tinham sido chamados à Casa Branca na sexta e juraram manter a viagem em segredo. Foram instruídos a aguardar outras informações em um email cujo assunto diria: "Instruções para a chegada ao torneio de golfe".

O pool de jornalistas de apenas duas pessoas foi uma mudança radical em relação a outras viagens presidenciais, mesmo outras em que a segurança era uma preocupação grande, em que foram levados 13 fotógrafos e jornalistas, o número habitual. Mas essa não seria a única característica incomum da viagem.

Desde que Abraham Lincoln cavalgou até as linhas de frente para acompanhar batalhas na Virgínia do Norte durante a Guerra Civil, nenhum presidente em exercício jamais chegou tão perto de combates. Franklin D. Roosevelt foi ao norte da África; Lyndon B. Johnson, ao Vietnã; Bill Clinton percorreu os Bálcãs; George W. Bush e Barack Obama foram a Iraque e Afeganistão; e Donald Trump foi ao Afeganistão.

Mas em todos esses casos os presidentes foram a países ou áreas sob o controle de forças americanas ou após o término das hostilidades. Neste caso, não haveria forças americanas presentes na Ucrânia, nem os EUA controlariam o espaço aéreo. Aviões militares americanos foram avistados sobrevoando o leste da Polônia durante a viagem, perto da fronteira, mas em nenhum momento teriam entrado no espaço aéreo ucraniano, por receio de que isso pudesse ser visto como a intervenção direta que Biden vem evitando.

Chegando à base Andrews na madrugada de domingo, os dois jornalistas entregaram seus celulares, que só lhes seriam devolvidos 24 horas depois. Os dois foram levados não ao Boeing 747 designado como Air Force One quando o presidente está a bordo, mas a um Air Force C-32, mais usado em voos domésticos a aeroportos com pistas mais curtas. O avião estava ao lado de um hangar, com as cortinas fechadas.

Biden chegou por volta das 4h, e o avião decolou às 4h15 para a travessia do Atlântico. Foi acompanhado por alguns assessores: Jake Sullivan; Jen O’Malley Dillon, uma vice-chefe de gabinete, e Annie Tomasini, diretora de operações do Salão Oval. O avião aterrissou na base aérea Ramstein, na Alemanha, às 17h13 pelo horário local. Ali, ainda com as cortinas fechadas, foi reabastecido, para então decolar novamente às 18h29, pousando no aeroporto de Rzeszów-Jasionka, na Polônia, às 19h57.

Biden foi colocado em um comboio com cerca de 20 carros e conduzido por uma rodovia quase vazia por cerca de uma hora, sem sirenes, até a pequena cidade de Przemyśl, onde foi levado à estação ferroviária na qual muitos milhares de refugiados desembarcaram nos últimos 12 meses, vindos da Ucrânia. Chegando às 21h15, os viajantes encontraram poucas pessoas na estação, e as barracas, fechadas.

O comboio parou diante de um trem pintado de roxo, mas com alguns vagões em azul com uma faixa amarela, lembrando a bandeira da Ucrânia. É raro um presidente se deslocar em qualquer veículo que não seja do Serviço Secreto ou das Forças Armadas americanas, mas viajar à Ucrânia de avião não é algo seguro. O trem partiu da estação às 21h37 e atravessou a fronteira da Ucrânia por volta das 22h.

A Casa Branca estava tão determinada a manter a viagem do presidente em segredo que mentiu a jornalistas em Washington. Cerca de quatro horas depois de Biden ter atravessado a fronteira da Ucrânia, seu gabinete em Washington divulgou uma agenda pública dizendo falsamente que o presidente ainda estava na capital americana e só pretendia embarcar para a Europa na noite de segunda.

Com trajes casuais, Biden teve dificuldade em dormir durante a viagem de trem, segundo um assessor que pediu para não ser identificado. Passou a viagem recordando suas visitas anteriores a Kiev, incluindo um discurso que fez ao Parlamento ucraniano e a fala em sua última viagem, em 2017. Leu um memorando sobre a história de Kiev, desde a fundação da cidade, e refletiu sobre sua própria história com a cidade.

A assessores Biden relatou seu telefonema com Zelenski em 24 de fevereiro do ano passado, quando a invasão russa começou, lembrando com assombro que o líder ucraniano lhe disse na época não ter certeza de quando eles voltariam a se falar. Agora, ali estavam, prestes a se encontrar cara a cara em Kiev.

O trem chegou à estação de Kiev-Pasazhyrsky às 8h pelo horário local. A plataforma tinha sido esvaziada. Vestindo terno azul com gravata nas cores ucranianas, Biden desembarcou num dia frio mas ensolarado, com céu azul. Foi recebido pela embaixadora americana, Bridget A. Brink. "É bom estar em Kiev outra vez."

Nas cinco horas que passou na cidade, o presidente se reuniu com Zelenski no palácio Mariinski, deixou uma coroa de flores junto com o líder ucraniano no Muro da Recordação do Mosteiro de São Miguel da Cúpula Dourada e passou pela embaixada dos EUA para um encontro com seus funcionários.

Então retornou à estação de trem, partindo às 13h10. O funcionário sênior disse que, durante o trajeto de volta à Polônia, Biden emitiu ordens às áreas militar, econômica e diplomática para ajudar a Ucrânia. Seu pensamento estava dominado pelas reuniões que acabara de ter. Outra vez, não conseguiu dormir muito.

Biden chegou de volta à estação de Przemyśl Główny às 20h45 e de lá retornou ao aeroporto para embarcar para Varsóvia, onde fez um discurso nesta terça. Segundo assessores, ele continuou a refletir sobre a escala anterior. Antes de deixar a Ucrânia, disse: "Kiev conquistou parte do meu coração".

Tradução de Clara Allain  

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