Descoberta de espião russo na Alemanha ameaça confiança ocidental na inteligência do país

Técnico de futebol pode ter tido acesso a informações críticas da Guerra da Ucrânia e até da CIA

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Weilheim in Oberbayern (Alemanha) | The New York Times

Alguns dias antes do Natal, um comboio de veículos de segurança invadiu um canto tranquilo de Weilheim, pitoresca cidade da Baviera com praças em tons pastéis e ruas de paralelepípedos meticulosamente mantidas. O alvo parecia tão despretensioso quanto o cenário: um técnico de futebol infantil local.

Nada jamais se destacou no homem, lembram os outros treinadores. Ele não era baixo, nem alto —amigável, mas nunca querendo conversar sobre algo além de futebol. Procurando palavras, a maioria escolheu a mesma: "normal".

Isso mudou quando souberam que ele tinha sido preso, acusado de traição e espionagem para a Rússia, num dos mais graves escândalos de espionagem da história recente da Alemanha.

Visão externa do Serviço Federal de Inteligência da Alemanha, em Berlim - Barbara Sax - 17.fev.23/AFP

O treinador, um ex-soldado alemão de 52 anos, trabalhava para o Serviço Federal de Inteligência da Alemanha, ou BND, como diretor de reconhecimento técnico, unidade responsável pela segurança cibernética e vigilância de comunicações eletrônicas que contribui com cerca de metade do volume diário de inteligência do órgão de espionagem.

Como espião russo, ele teria acesso a informações críticas coletadas desde que Moscou invadiu a Ucrânia no ano passado. E pode ter obtido vigilância de alto nível, não apenas de espiões alemães, mas também de parceiros ocidentais como a CIA, a agência de inteligência dos EUA.

A inteligência alemã tem uma longa e conturbada história de infiltração russa. Mas o caso mais recente agora ameaça abalar a confiança às vezes hesitante das agências de inteligência ocidentais na Alemanha em um momento crítico, quando a Rússia apresenta sua maior ameaça à segurança europeia desde a Segunda Guerra Mundial e Moscou intensifica seus esforços de espionagem em todo o continente.

A prisão ocorreu logo após uma série de incursões em toda a Europa que revelaram os chamados ilegais, ou agentes secretos russos, na Holanda, Suécia e Noruega.

As autoridades alemãs ainda estão tentando determinar que danos seu espião pode ter causado. Mas a descoberta de um agente duplo abalou os círculos políticos alemães.

Alguns líderes estão questionando abertamente a lealdade de seus próprios serviços de segurança e quão profundo é o problema dos simpatizantes russos dentro de suas fileiras.

As autoridades alemãs —que saudaram publicamente a prisão como uma vitória contra a Rússia— recusaram as perguntas dos jornalistas. Elas identificaram seu principal suspeito, o técnico de futebol, apenas como Carsten L., de acordo com as rígidas leis de privacidade. Os meios de comunicação britânicos o identificaram como Carsten Linke. Uma investigação do New York Times confirmou seu nome, local de nascimento e antecedentes.

Em particular, três autoridades familiarizadas com a investigação, que pediram anonimato para compartilhar detalhes porque discutir o inquérito publicamente é ilegal, temem que o caso possa ser a ponta de um iceberg ameaçador.

"Recrutar outros espiões é o nível mais alto da espionagem", disse uma autoridade. "E nossa unidade de reconhecimento técnico é um dos departamentos mais importantes do BND. Encontrar alguém relativamente alto lá torna este caso explosivo."

O caso já levou a uma segunda prisão, de um cúmplice nascido na Rússia que atuou como mensageiro e, segundo uma autoridade, levou cerca de 400 mil euros em dinheiro de Moscou para Linke, por suas informações.

Ainda não está claro quem recrutou quem, disseram duas pessoas que acompanham a investigação, mas as autoridades acreditam que os dois foram apresentados por um militar alemão da reserva que é membro do partido populista de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, ou AfD.

A inteligência alemã aparentemente foi informada sobre o espião por uma agência ocidental, disseram aqueles que acompanham a investigação.

O caso também expôs outras vulnerabilidades sérias da Alemanha, que segundo ex- autoridades de inteligência americanas nos últimos anos não é vista como agressiva o suficiente em sua vigilância da espionagem russa e seus esforços de contra-espionagem.

Durante anos, enquanto os políticos alemães impulsionavam os laços econômicos com Moscou —principalmente comprando seu gás—, eles fecharam muitas unidades de inteligência focadas na Rússia.

No entanto, o presidente russo, Vladimir Putin, que começou sua carreira como agente da inteligência (KGB) na extinta Alemanha Oriental, comunista, adotou o rumo oposto: ele fez da Alemanha, a maior economia da Europa, um alvo prioritário.

"Eles têm especialistas altamente treinados que falam alemão fluentemente, que conhecem muito bem a situação e lançam operações muito bem dirigidas na Alemanha", disse Nico Lange, ex-funcionário do Ministério da Defesa alemão que hoje é membro sênior da Conferência de Segurança de Munique. "Do nosso lado, você realmente não tem quase ninguém que conheça a Rússia, fale russo fluentemente e observe o outro lado de perto."

As investigações até agora sugerem que a conexão de Linke com Moscou antecede a invasão da Ucrânia, em fevereiro passado. A questão que atormenta as autoridades alemãs, caso as acusações sejam confirmadas, é o que levaria um oficial de inteligência, um nacionalista que passou anos no Exército servindo seu país, a voltar-se contra ele?

Nenhum incentivo financeiro claro foi encontrado, nem Linke estava endividado.

Os únicos indícios de potenciais motivos são suas aparentes simpatias de extrema-direita. Uma busca em sua casa e escritórios, segundo duas pessoas familiarizadas com a investigação, encontrou panfletos do partido de extrema-direita AfD. No trabalho, Linke disse abertamente a colegas que sentia que o país estava se deteriorando e desdenhou particularmente de seu novo governo de centro-esquerda, segundo um dos que acompanharam o inquérito.

Ao longo dos anos, grupos de extrema-direita tornaram-se cada vez mais simpáticos à Rússia, atraídos pela retórica nacionalista de Putin. A Alemanha tem tentado erradicar simpatizantes de extrema-direita de seus serviços de segurança, inclusive das forças armadas, desmontando até mesmo parte de suas forças especiais.

A pequena cidade de Weilheim, na Alemanha - Ingmar Bjorn Nolting -6.fev.23/The New York Times

Para os aliados da Alemanha, essas preocupações podem parecer familiares. Desde os tempos da Guerra Fria, a agência de inteligência alemã sofreu infiltração russa, disse Erich Schmidt-Eenboom, historiador que escreveu vários livros sobre a agência e mantém uma lista de todos os agentes do BND que foram "transformados", expondo centenas de operativos.

Entre eles estava o caso de 1961 de Heinz Felfe, um informante da KGB que revelou as operações do BND em toda a Europa. Após a queda da União Soviética, a Alemanha soube que um diretor importante, Gabriele Gast, que trabalhava em estreita colaboração com o governo, espionou para a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, durante 17 anos.

"O BND era considerado por todos os serviços parceiros como um núcleo de espiões", disse Schmidt-Eenboom. "Sua segurança interna falhou ao longo dos anos, repetidamente."

De acordo com Schmidt-Eenboom, as informações disponíveis a Linke eram vastas: espionagem na internet, estações de vigilância alemãs, dispositivos móveis de escuta no sul da Ucrânia e navios de reconhecimento da marinha alemã no mar Báltico observando a guerra.

Além disso, Linke teria acesso a relatórios de serviços dos EUA, como a CIA e a Agência de Segurança Nacional, bem como da Sede de Comunicações do Governo da Grã-Bretanha.

Linke parecia usar isso a seu favor, tendo solicitado relatórios sobre a Rússia ou a guerra de uma funcionária que também foi investigada, mas depois liberada como cúmplice involuntária, segundo pessoas que acompanham a investigação.

Pouco antes de Linke ser denunciado como espião, ele havia sido promovido a chefe das verificações de segurança de pessoal. O dano que ele poderia ter causado lá teria sido muito maior: ele pode ter passado dicas sobre agentes vulneráveis a chantagem ou suborno.

Um mês depois que Linke foi levado sob custódia, um cúmplice, Arthur Eller, 31, foi detido pelo FBI em Miami. Após um interrogatório, ele foi colocado num avião para Munique, onde foi preso por investigadores alemães.

Cidadão naturalizado, Eller nasceu na Rússia e se mudou para a Alemanha com seus pais na década de 1990. Ele também serviu nas forças armadas alemãs.

Eller trabalhou mais recentemente como empresário ligado a empresas na Alemanha e na África, incluindo uma empresa comercial de petróleo registrada na Nigéria que ele dirigia ao lado de um negociante de ouro com sede na Suíça e um empresário nigeriano.

Acredita-se que ele e Linke tenham se conhecido em 2021, disseram três pessoas familiarizadas com a investigação, num festival anual organizado pelo clube esportivo Weilheim, onde treinadores de futebol e suas famílias tomavam café com bolo ou cerveja à tarde. Os dois foram apresentados por um dos membros locais do partido de extrema-direita AfD em Weilheim, que tinha servido no exército com Eller e continua como reservista.

Registros de viagens e de voos encontrados por um grupo investigativo russo, o Dossier Center, mostram que Eller fez centenas de voos para Nova York e Los Angeles; Dubai, nos Emirados Árabes Unidos; Baku, no Azerbaijão; Belgrado, Sérvia; Tbilisi, Geórgia; Praga, República Tcheca; Doha, no Qatar; Xangai; Genebra; e inúmeras cidades russas.

Muitas viagens ao seu país natal eram curtas, mas ele geralmente se hospedava nos melhores hotéis de Moscou e São Petersburgo, de acordo com o Dossier Center. Ele também fez viagens para locais russos surpreendentemente obscuros, como Nizhnekamsk.

Eller tem cooperado com os investigadores, disseram pessoas familiarizadas com a operação. Linke até agora permaneceu em silêncio.

De acordo com as pessoas que acompanharam o inquérito, Eller disse aos investigadores que acreditava estar trabalhando com Linke numa operação do BND. Mas as autoridades alemãs expressaram cautela com sua versão dos eventos.

Eller também disse que atuou como mensageiro, levando documentos para a Rússia e trazendo dinheiro de volta. Por quatro vezes, disse ele, passou para Linke envelopes com dinheiro no final do ano passado, disse uma pessoa familiarizada com a investigação.

Em sua última entrega, a ousadia de Linke aparentemente chegou ao ponto de fazer que um agente do BND trabalhando no aeroporto de Munique pegasse Eller e recebesse uma soma final em dinheiro por ele —um envelope que, segundo os investigadores, conteria 100 mil euros.

As autoridades alemãs estão investigando essa pessoa, mas não rotularam o agente como suspeito. Em vez disso, até agora elas acreditam que ele foi um cúmplice involuntário.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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