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Famílias de El Salvador estão há meses sem contato com detidos em estado de exceção

ONGs denunciam encarceramentos arbitrários e maus-tratos; Bukele comanda guinada autoritária em luta contra gangues

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San Salvador (El Salvador)

Da rede de sua casa na periferia de San Salvador, Nancy Turcios viu soldados passarem pouco tempo depois de seu irmão sair pela porta. Ela alcançou a rua quando eles já se aglomeravam em torno de um grupo de homens e procurou os pés tentando identificar os revistados. Lá estavam os tênis do irmão.

Já havia passado das 18h do dia 26 de março, um sábado. Aquele seria o fim de semana mais letal de El Salvador desde 2001. A nação centro-americana registrou 87 mortes em 72 horas —62 em um só dia, em um país de quase 6,5 milhões de habitantes.

Salvadorenha chora ao ter familiares detidos pela polícia em San Salvador - Jose Cabezas/Reuters

Depois de ser revistado, Mario Turcios, 24, passou por várias delegacias. De carro, Nancy o seguiu o quanto pôde, até perder os soldados de vista. No dia seguinte, descobriu onde o irmão estava e foi visitá-lo às 6h. "Foi a última vez que o vi."

Ainda naquele domingo, o presidente Nayib Bukele, no poder em El Salvador desde 2019, aprovou um estado de exceção até hoje em vigor. A medida passou com facilidade na Assembleia Legislativa, formada por 56 deputados de seu partido, em um total de 84 parlamentares.

Não há dados oficiais sobre o número de encarcerados, mas, no fim de maio, o jornal La Prensa estimou 74.547 presos ao todo, o que corresponderia a 1,7% da população adulta.

Desde o início do estado de exceção, detenções arbitrárias são a denúncia mais frequente de violação a direitos humanos. Das reclamações recebidas pela organização Cristosal, estão presentes em 97,4%; tortura e maus-tratos, em 12,1%. Até o final de junho, a organização contabilizou 54 pessoas mortas sob custódia do Estado em centros penais ou hospitais.

Outdoors em toda a cidade indicam o número para o qual os salvadorenhos devem ligar se quiserem denunciar um pandilheiro, como são chamados os participantes de grupos criminosos que controlam parte do território salvadorenho. "Precisamos de sua ajuda para seguir capturando terroristas", dizem os cartazes. A estratégia está sendo usado para vinganças pessoais, afirmam organizações do país.

"Se a 'comunidade internacional' está preocupada por seus anjinhos, venham e tragam comida a eles, porque eu não tirarei orçamento das escolas para dar comida a esses terroristas. Vamos racionar a mesma comida que se dá agora", escreveu Bukele em seu Twitter após a onda de violência, em referência ao tratamento dado nas prisões.

Desde aquele domingo, Nancy já foi 12 vezes à penitenciária de Izalco para tentar descobrir em que cela Mario está. Ela conta que em apenas uma vez os funcionários receberam os alimentos e roupas que levou. "Ele não é pandilheiro", diz. "Se fosse, eu não teria ido atrás."

Há três meses, ela vem reunindo documentos para provar a inocência do irmão. Já juntou ficha criminal, contatos de vizinhos e relatos —um deles da americana Leslie Schuld, historiadora que está no país há 29 anos e para quem, desde novembro de 2021, Mario trabalhava como eletricista no Centro de Intercâmbio e Solidariedade. A organização tem atuado para soltar os inocentes.

"As pessoas serão estigmatizadas. Vão ter dificuldades para arrumar trabalho, os próprios vizinhos vão dizer que eram culpados, já que a polícia os prendeu", afirma Schuld.

Ela vê o governo requentar uma estratégia da Guerra Civil (1979-1992): atacar as periferias, que seriam o sustento das pandilhas, para desmantelar o crime; "tirar a água do peixe", como ficou conhecida a técnica. "Como essas pessoas vão sobreviver? O comércio não financia as maras [gangues], mas a comida das famílias", diz.

A medida, junto com a prisão de inocentes, é o que incomoda Nancy em relação ao regime de Bukele. O presidente sustenta uma das maiores popularidades entre seus pares na América Latina: no início de junho, dados do centro Prensa Gráfica mostraram que 86,8% dos salvadorenhos aprovavam o governo.

Em 2019, ele venceu as eleições prometendo uma política linha dura contra o crime e rejeitando o sistema —embora seu berço político seja a FMLN, partido tradicional da esquerda no país do qual se afastou para disputar as eleições presidenciais.

Em maio, o jornal El Faro revelou áudios que mostram negociações entre um membro do governo e criminosos da MS-13, uma das três principais pandilhas do país. A onda de violência do final de março teria ocorrido pelo fim de um pacto.

A resposta do governo Bukele a essa ruptura foi mais repressão, segundo Verónica Reyna, diretora do programa de Direitos Humanos do Serviço Social Pasionista, organização de prevenção à violência.
"É uma demonstração de força. 'Se vocês vão mostrar toda a sua violência, eu vou mostrar tudo que posso fazer para combatê-la'", diz.

Comunidade Monsenhor Romero, a 19 km de San Salvador, onde vivia Mario Turcios - Daniela Arcanjo/Folhapress

Nancy diz não acreditar que o governo tenha negociado com criminosos. Eleitora de Bukele em 2019, ela tem dificuldade de fazer críticas duras ao governo. "Ele tem trabalhado bem, sido um homem bom", diz ela, citando a atuação na pandemia. "A única coisa é essa injustiça que está levando pessoas inocentes."

Para Reyna, os altos índices de violência explicam parte da ampla aceitação de Bukele, que desde o início de seu mandato já invadiu a Assembleia com militares, destituiu juízes da Sala Constitucional da Suprema Corte e perseguiu jornalistas.

"A violência gera um nível de dano ao tecido social que faz a população buscar salvar a própria pele. É a luta pela sobrevivência diária", afirma. "Contanto que eu não tenha mais um morto em frente à minha casa, que eu não seja vítima de homicídio ou que não violem a minha filha, estou bem."

Procurado, o governo de El Salvador não se pronunciou sobre os temas desta reportagem.

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