Pesadelos de guerra invadem sono dos ucranianos enquanto eles sonham com a paz

Pesquisa mostra que 70% da população da Ucrânia já teve sonhos vívidos com o conflito

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Maria Varenikova
Kiev (Ucrânia) | The New York Times

Os tanques russos avançam até a casa de Taras, 4 anos, e abrem fogo, soterrando a mãe dele sob destroços. Taras tenta com todas as forças puxá-la dos escombros, mas ela é muito pesada. Ele tenta em vão puxá-la pelo braço.

Taras acorda, chorando incontrolavelmente.

Sua mãe, Anastasia Haidukevych, 41 anos, descreveu o pesadelo de seu filho. "Tentei esconder a guerra dele, mas a guerra está em toda parte à nossa volta", comentou.

Muitas pessoas não conseguem encontrar a paz nem mesmo em sonhos.

uma mulher idosa aparece dormindo numa cama improvisada dentro de um bunker, sobre cobertores. outras três camas foram dispostas ao seu lado
Uma mulher de 85 anos dorme em sua cama no bunker da fábrica Ostchem em Severodonetsk, no leste da Ucrânia, em meio à invasão russa - Yasuyoshi Chiba - 27.abr.2022/AFP

Passado um ano desde que a invasão russa começou, a guerra está afetando os ucranianos na madrugada, mesmo os que vivem longe da linha de frente e não testemunharam violência em primeira mão, como a família Haidukevych, residente em Kiev.

Numa pesquisa online recente, 70% dos ucranianos relataram já ter tido pelo menos um pesadelo sobre a guerra. Trinta por cento deles dizem que já viram a morte de frente em seus sonhos.

Psicólogos dizem que sonhos vívidos são uma resposta comum a grandes transformações na vida e que os ucranianos provavelmente continuarão a ter sonhos envolvendo a guerra por muito tempo depois de as hostilidades acabarem.

Os ucranianos que já vivenciaram o combate ou a destruição frequentemente revivem o trauma quando dormem. "Algumas pessoas veem os acontecimentos traumáticos repetidos em seus sonhos", disse o DreamApp em relatório sobre sua pesquisa, da qual mais de 700 pessoas participaram.

Mas a psique se adapta às grandes transformações de diferentes maneiras. Algumas pessoas que participaram da pesquisa relataram sonhos com imagens de segurança e conforto, da vida antes da guerra, às vezes ambientadas na infância.

Para Victoria Semko, psicóloga que ajudou a criar um grupo de terapeutas que atende pessoas que passaram pela brutal ocupação russa de Irpin, um subúrbio de Kiev, esses sonhos mostram "que aquilo que está ausente em sua vida no momento pode aparecer em sonhos e ajudar a pessoa a sentir-se melhor". Mesmo os pesadelos podem ajudar.

"Quando uma pessoa sonha com acontecimentos traumatizantes, isso a ajuda a reviver o que aconteceu, mas num ambiente mais calmo", disse Semko. "Ajuda a pessoa a superar o que ela viveu." Para outras pessoas, porém, reviver traumas, cientes de que isso ocorre num sonho, as traumatiza novamente.

Entrevistados, mais de 12 civis e soldados ucranianos que não participaram da pesquisa do DreamApp descreveram sonhos vívidos e cheios de ansiedade de um tipo que disseram não ter tido até a guerra começar, em fevereiro de 2022.

Olena Bond, 44, residente em Kiev, contou que tem dificuldade para dormir. Um médico lhe receitou antidepressivos, e foi então que os pesadelos começaram. "Em muitos eu me via matando pessoas, matando inimigos", ela contou.

Os sonhos aumentaram no outono, quando a Rússia começou a lançar ataques com mísseis de longo alcance contra a infraestrutura crítica de cidades distantes do front.

"Recentemente tive um sonho em que uma explosão muito poderosa me jogou para o alto e então eu caí numa queda lenta, prolongada", disse Bond. "Enquanto estava caindo, eu pensava ‘estou viva, ainda estou viva’."

Ivan Chuiko, soldado que combate no leste da Ucrânia, disse que antes da guerra seus sonhos geralmente eram leves e felizes. Hoje já não é assim.

"Uma vez acordei na trincheira no meio da noite e não entendia se estava acordado ou se ainda estava dormindo", contou Chuiko, 37 anos. "Eu estava conversando com meus amigos, mas não conseguíamos encontrar uma língua comum. Era como se algum demônio ou força perversa nos estivesse separando. Eu não conseguia enxergar o demônio direito, mas sabia que ele estava ali."

Geralmente as visões que o assombram à noite são menos abstratas. "Sonho principalmente com batalhas de tanques", disse Chuiko.

Outro soldado, Svyatoslav, 45, disse que a maioria de seus sonhos no front são muito agradáveis. "Muitas vezes sonho com o que haverá no futuro, depois da guerra."

O soldado Nazar Kuzmine, 33, combateu na mesma unidade que seu irmão, que foi morto em ação em novembro passado.

"Durmo bem quando não há bombardeios e não me lembro do que sonhei", ele disse. "Mas recentemente ouvi a voz do meu irmão no meu sonho. Era mais fácil estar aqui na guerra com meu irmão, quando estávamos juntos."

Os mortos também aparecem para Anzhelika Vagorovska. No primeiro dia da guerra, um piloto ucraniano foi abatido por um míssil russo e morreu. Era o pai de Vagorovska. "Sempre converso com ele nos meus sonhos", ela disse.

Vagorovska é advogada, tem 34 anos e partiu para a Alemanha com suas duas filhas pequenas depois do país ser invadido, mas achou difícil viver longe de casa. Ela retornou à Ucrânia em outubro.

"Na Alemanha, eu sonhava com minha casa", ela contou. "Aqui em Kiev, sonho com minha infância em Lysychansk." Boa parte dessa cidade foi destruída nos combates na primavera passada, e hoje ela está ocupada pelas forças russas.

Em Lysychansk, Vagorovska vivia com seus avós numa casa no alto de um morro com vista para a cidade. À noite eles viam as luzes da cidade piscando. Hoje, contou, ela sonha com isso.

"Posso estar sonhando com qualquer coisa, mas nos meus sonhos sempre tenho consciência da guerra", ela disse.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.