Descrição de chapéu The New York Times

EUA ignoraram vários alertas de trabalho infantil com mão de obra migrante

Crianças que cruzaram a fronteira sozinhas foram recrutadas ilegalmente e tiveram que trabalhar para comer

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Hannah Dreier
The New York Times

Em 2021, Linda Brandmiller trabalhava numa arena em San Antonio, no Texas, que tinha sido transformada em abrigo de emergência para crianças migrantes. Milhares de meninos dormiam em catres enquanto o governo Biden enfrentava um número recorde de menores que entravam nos EUA sem os pais.

O trabalho de Brandmiller era ajudar a selecionar patrocinadores, e ela havia sido treinada para procurar sinais de tráfico. Em sua primeira semana, surgiram dois casos: um homem disse a ela que estava patrocinando três meninos para empregá-los em sua construtora. Outro, que morava na Flórida, estava tentando patrocinar duas crianças que teriam que trabalhar para arcar com os custos da viagem ao norte.

Três meninos da Guatemala caminham em Homestead, na Flórida
Três meninos da Guatemala caminham em Homestead, na Flórida - Kirsten Luce - 20.ago.22/The New York Times

Ela imediatamente contatou supervisores do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês), a agência federal responsável por essas crianças. "Isso é urgente", escreveu ela num email.

Mas em poucos dias ela percebeu que uma das crianças estava para ser entregue ao homem na Flórida. Brandmiller escreveu mais um email, desta vez pedindo "atenção imediata" de um supervisor e acrescentando que o governo já tinha enviado um menino de 14 anos para o mesmo "padrinho".

Ela também enviou um email ao gerente do abrigo. Alguns dias depois, seu acesso ao prédio foi barrado durante o horário de almoço. Ela disse que nunca soube por que foi demitida. Nos últimos dois anos, mais de 250 mil crianças migrantes foram sozinhas para os EUA. Milhares de crianças acabaram em tarefas pesadas em todo o país –trabalhando à noite em matadouros, trocando telhados, operando máquinas em fábricas– tudo em violação das leis de trabalho infantil, como mostrou uma investigação recente do NYT.

Após a publicação do artigo, em fevereiro, a Casa Branca anunciou mudanças nas políticas e uma repressão às empresas que contratam crianças. Mas o tempo todo havia sinais do crescimento explosivo dessa força de trabalho e avisos que o governo Biden ignorou ou não viu.

Repetidas vezes, funcionários veteranos do governo e funcionários terceirizados disseram ao HHS, inclusive em relatórios que chegaram ao secretário Xavier Becerra, que as crianças pareciam estar em risco. O Departamento do Trabalho divulgou comunicados noticiando o aumento do trabalho infantil.

Assessores seniores da Casa Branca viram evidências de exploração, como grupos de crianças migrantes que foram encontradas trabalhando com equipamentos industriais ou produtos químicos cáusticos.

Enquanto o governo tentava esvaziar abrigos lotados além da capacidade, as crianças eram liberadas com pouco apoio a patrocinadores que esperavam que elas assumissem trabalhos extenuantes e perigosos.

Em entrevistas as autoridades expressaram preocupação com as crianças migrantes, mas se esquivaram da culpa por não protegê-las. Funcionários do HHS disseram que o departamento examinou os patrocinadores, mas não conseguia controlar o que acontecia com as crianças depois que eram liberadas. O monitoramento dos locais de trabalho, disseram, era tarefa do Departamento do Trabalho.

Funcionários do Departamento do Trabalho, por sua vez, alegam que os inspetores aumentaram seu foco no trabalho infantil, mas disseram que não são uma agência de assistência social.

E funcionários da Casa Branca disseram que, embora os dois departamentos tenham repassado informações sobre o trabalho infantil migrante, os relatórios não foram marcados como urgentes e não deixaram claro o escopo do problema. Robyn M. Patterson, porta-voz da Casa Branca, disse que o governo agora está aumentando a análise dos empregadores e revisando sua verificação de patrocinadores. "É inaceitável que as empresas estejam usando trabalho infantil, e este governo continuará trabalhando para fortalecer o sistema para investigar essas violações e responsabilizar os infratores", diz o comunicado.

Mas a Casa Branca se recusou a comentar por que o governo não reagiu aos repetidos sinais de que crianças migrantes estavam sendo amplamente exploradas. "Se eu vi, eles poderiam ter percebido", diz Brandmiller, que também é advogada de imigração. "Houve tantas oportunidades para conectar esses pontos, e ninguém nunca fez isso." Um porta-voz do HHS disse que a agência não tinha registro das preocupações de Brandmiller. A empresa que administrava o abrigo de emergência se recusou a comentar.

Brandmiller disse que ainda está preocupada com o menino de 14 anos. Ele está morando na Flórida, longe de sua família na Guatemala. Em uma entrevista, sentado na varanda mofada de uma casa cheia de crianças migrantes, ele disse que estava trabalhando em turnos longos num armazém refrigerado, embalando vegetais para distribuição em todo o país, e não via seu patrocinador havia meses.

Ele sentia falta da avó e às vezes passava dias sem falar com ninguém. Queria ir à escola, mas se sentia preso pois precisava ganhar dinheiro para pagar suas dívidas, se sustentar e ajudar seus irmãos. Ninguém jamais veio ver como ele estava, contou.

'Isso é besteira'

Logo depois que Joe Biden assumiu o cargo, o número crescente de crianças migrantes desencadeou tensões entre o novo governo e antigos funcionários. O presidente havia prometido cumprir uma lei antitráfico de 2008 que exige que o governo federal aceite crianças que viajam sozinhas da maioria dos países e permite que elas fiquem nos EUA durante o processo de solicitação de permanência legal.

Mas a lei não previu que uma pandemia devastaria as economias dos países centro-americanos. Pais em situação de pobreza cada vez mais grave começaram a mandar seus filhos para os EUA para ganhar dinheiro –parte de um fenômeno que alguns chamam de "separação familiar voluntária".

Em 2021, enquanto as imagens de crianças dormindo sob cobertores em centros superlotados dominavam os noticiários, Susan Rice, chefe de política interna da Casa Branca, disse a funcionários que estava frustrada com a situação, segundo cinco pessoas que trabalharam com ela. Rice desabafou em uma nota, que rabiscou num memorando detalhando a posição dos defensores, que acreditava que o fechamento da fronteira na pandemia estava obrigando os pais a enviar filhos sozinhos, às vezes chamados de UCs (sigla de "unaccompanied children" –crianças desacompanhadas).

"Isso é besteira", escreveu Rice, de acordo com uma cópia do memorando analisada pelo New York Times. "O que está levando à separação 'voluntária' é a nossa generosidade com as UCs!"

Em comunicado, Patterson, porta-voz da Casa Branca, disse que qualquer sugestão de que Rice se sentia constrangida pelas exigências da lei era falsa e que ela estava "orgulhosa de estar fazendo a coisa certa e tratando as crianças com dignidade e respeito".

De acordo com a lei, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos é responsável por avaliar os patrocinadores para garantir o bem-estar das crianças e protegê-las de tráfico ou exploração. Mas, à medida que os abrigos ficavam cheios de crianças, o departamento começou a afrouxar algumas restrições e a pedir a aceleração dos processos.

Antigos funcionários do HHS reclamaram que as mudanças colocavam as crianças em perigo. Assessores da Casa Branca e funcionários do governo ficaram exasperados, acreditando que esses trabalhadores estavam se apegando a protocolos que mantinham crianças em abrigos, quando era melhor para elas estarem em uma casa com um adulto. "Foi enlouquecedor", conta Vivian Graubard, assessora da Casa Branca que trabalhou com Rice sobre questões de crianças migrantes.

Pelo menos cinco funcionários do HHS apresentaram queixas e disseram que foram expulsos depois de levantarem preocupações sobre a segurança infantil.

Jallyn Sualog era o membro de carreira mais antigo da divisão do HHS responsável por crianças migrantes desacompanhadas quando Biden assumiu o cargo. Ela ajudou a construir o programa após a aprovação da lei de 2008 e, como democrata de longa data, comemorou a vitória de Biden.

Mas disse que logo começou a ouvir relatos de que crianças estavam sendo entregues a adultos que mentiram sobre suas identidades ou que planejavam explorá-las. Ela alertou seus chefes em um email em 2021: "Se nada continuar a ser feito, haverá um fato catastrófico". Ela continuou a enviar emails sobre situações que descreveu como "críticas" e que colocavam "crianças em risco".

Preocupada com o fato de ninguém a estar escutando, Sualog apresentou uma reclamação ao órgão de vigilância interno do HHS e solicitou proteção ao denunciante. Ela também deu o passo incomum de falar com funcionários do Congresso sobre suas preocupações. "Sinto que só me faltava protestar nas ruas. Fiz o que pude para alertá-los", diz Sualog sobre o governo. "Eles simplesmente não quiseram ouvir."

No final de 2021, ela foi transferida de seu cargo. Apresentou uma queixa ao escritório federal responsável pela aplicação das regras de proteção ao denunciante, argumentando que havia sofrido retaliação ilegal.

A ouvidoria do HHS divulgou um relatório que discutia o caso de Sualog e vários rebaixamentos e demissões na agência que "podem ter chegado ao nível de calar denunciantes". Sualog fez um acordo com a agência, que concordou em pagar os custos processuais, e ela pediu demissão no mês passado.

Um porta-voz do HHS não quis comentar a reclamação de Sualog, mas negou retaliação a denunciantes. Embora alguns funcionários discordem da abordagem do governo, disse o porta-voz, mudanças significativas são necessárias para lidar com o aumento de crianças migrantes desacompanhadas.

Tendências perturbadoras

Algumas das advertências mais persistentes vieram de fora do governo. O HHS libera a maioria das crianças para patrocinadores sem cuidar de seu acompanhamento, mas contrata organizações para fornecer a milhares de crianças de alto risco vários meses de serviços de apoio.

No final do ano passado, Matt Haygood, diretor sênior de serviços infantis do Comitê dos EUA para Refugiados e Imigrantes, uma das maiores dessas organizações, enviou um email com o assunto "Preocupações com o tráfico" para vários funcionários do HHS.

"Identificamos algumas tendências preocupantes na área metropolitana de Chicago", escreveu ele, incluindo vans que recolhiam crianças em horários estranhos, sugerindo que elas estavam sendo levadas para empregos em fábricas. Haygood perguntou se o HHS consideraria adicionar o bairro de Little Village a uma lista de observação, para que os potenciais patrocinadores fossem examinados mais de perto.

Um funcionário do HHS respondeu que mais de 200 crianças, a maioria delas guatemaltecas, haviam sido liberadas para o bairro e confirmou que muitos desses casos foram marcados como suspeitos: adultos patrocinavam várias crianças, e menores estavam trabalhando em vez de frequentar escolas.

"Certamente existem muitos outros sinais de alerta relacionados ao tráfico", escreveu o membro da equipe. Haygood esperava que a agência adicionasse mais salvaguardas para crianças liberadas na área. Em vez disso, o HHS decidiu que não eram necessários.

Em resposta ao New York Times, um porta-voz do HHS disse que o departamento já havia implementado proteções para crianças e que, na época, considerava a expansão dessas medidas um exagero.

Outras organizações de serviço social disseram ter sinalizado grupos de casos suspeitos, inclusive em Nashville e Dallas. "Estamos esperando uma audiência do Congresso que dirá algo assim: 'Como foi acontecer isso com todas essas crianças?'", diz Haygood. Nos últimos dois meses, os líderes de ambos os partidos questionaram por que tantas crianças migrantes acabaram em empregos exploradores.

Uma porta-voz do HHS disse que o departamento está ciente de que algumas crianças migrantes trabalhavam longas horas porque estavam sob intensa pressão para ganhar dinheiro, mas a responsabilidade legal da agência pelas crianças termina quando elas são liberadas.

Ainda assim, o departamento está trabalhando para fornecer alguns meses de gerenciamento de casos para todas as crianças migrantes desacompanhadas, acrescentou a porta-voz.

Por enquanto, a maioria das crianças liberadas para patrocinadores tem pouco apoio além de uma linha telefônica do HHS. De acordo com documentos internos obtidos pelo New York Times, as denúncias de tráfico para essa linha aumentaram cerca de 1.300% nos últimos cinco anos.

Numa ligação no ano passado, um menino que mora em Charlotte, na Carolina do Norte, disse que seu padrinho havia encontrado um emprego para ele num restaurante e que ele precisava "trabalhar para comer". Noutra, um menino disse que seu padrinho nunca o matriculou na escola após ele ser liberado de um abrigo em El Paso, no Texas, e o estava obrigando a pagar aluguel e alimentação. A porta-voz do HHS disse que a agência pede às autoridades locais que verifiquem as crianças que possam estar em risco.

Sinais de alerta

Na Casa Branca, Rice estava no centro da crise das crianças migrantes. Enquanto ela pressionava para tirar as crianças dos abrigos mais rapidamente, começaram a surgir pistas sobre o que estava acontecendo com elas quando saíam.

Em 2021, perto do auge do congestionamento na fronteira, gerentes do HHS escreveram um memorando explicando sua preocupação pelo aumento de relatos de que crianças trabalhavam junto com seus patrocinadores, sinal de possível tráfico de mão de obra. Esse memorando chegou a Rice e à equipe dela.

Na mesma época, a equipe foi informada sobre as preocupações com um grande grupo de crianças que havia sido liberado para uma cidade no Alabama, segundo seis membros atuais e antigos do grupo. A situação foi objeto de frequentes atualizações, pois o HHS enviou gerentes à cidade para verificar a situação das crianças e coordenou os departamentos do Trabalho e de Segurança Interna para verificar se elas estavam trabalhando em avícolas.

Um ex-assessor da Casa Branca lembrou-se de que na época pensou que o fato era preocupante e que sugeria que outros casos poderiam estar sendo ignorados. Um porta-voz do governo negou que autoridades tenham sido informadas sobre a situação. Alguns meses depois, a equipe de Rice descobriu que o HHS não conseguia contatar um número crescente de crianças migrantes apenas um mês após sua liberação, de acordo com um ex-alto funcionário da Casa Branca.

Mas a Casa Branca tratou esses casos como eventuais, não como sinais de um problema crescente. Tyler Moran, consultora sênior de migração de Biden na época, disse que confiava no HHS para lhe dizer como avaliar informações. Os membros da equipe, disse ela, não indicaram uma crise mais geral de trabalho infantil. "A Casa Branca incumbiu as agências de nos informar quando as coisas fossem um problema."

O Departamento do Trabalho estava enviando seus próprios sinais. Em 2022, os investigadores começaram a descobrir sinais de trabalho infantil migrante em locais de trabalho industriais, incluindo várias fábricas de autopeças no sul. O departamento divulgou comunicados à imprensa alertando sobre o aumento das violações de trabalho infantil.

No ano passado, investigadores iniciaram uma grande operação em uma empresa de saneamento que acabou descobrindo que mais de cem crianças, em sua maioria falantes de espanhol, trabalhavam no turno da noite limpando frigoríficos em todo o país. Muitas das crianças passaram pelo sistema de abrigo para migrantes e foram entregues a patrocinadores.

Como os investigadores encontraram cada vez mais crianças migrantes trabalhando para a firma de limpeza em todo o país, o HHS informou a equipe de Rice sobre a situação regularmente durante meses, de acordo com duas pessoas familiarizadas com as conversas.

O Departamento do Trabalho também incluiu detalhes sobre a empresa de limpeza e as operações de autopeças em relatórios semanais em nível de gabinete. "Eram do tipo 'temos problemas aqui'", disse Martin J. Walsh, secretário do Trabalho até o mês passado. "Enviamos relatórios para a Casa Branca, então eles sabiam que estávamos trabalhando nisso." Quando o Departamento do Trabalho atualizou seu painel público em dezembro, mostrou um aumento de 69% nas violações de trabalho infantil desde 2018.

Um porta-voz do departamento disse que a Casa Branca estava ciente do aumento do trabalho infantil porque era amplamente público. Mas Andrew J. Bates, vice-secretário de imprensa da Casa Branca, disse que as autoridades locais não sabiam do aumento do trabalho infantil até a reportagem do NYT.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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