Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia

Por que Alemanha protege memoriais da URSS que outros derrubaram com Guerra da Ucrânia

Remoção de monumentos vistos como símbolos da opressão da Rússia se acelerou no Leste Europeu após invasão

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Ekaterina Bodyagina Christopher F. Schuetze Anatoly Kurmanaev
Lützen (Alemanha) | The New York Times

Poucos dias antes da invasão russa à Ucrânia, com as forças de Moscou concentradas na fronteira, autoridades da cidade medieval de Lützen, na Alemanha, concederam status de monumento histórico a um memorial da Segunda Guerra Mundial da era soviética localizado em frente a um jardim de infância do centro da cidade.

"Glória ao grande povo russo —a nação dos vencedores", diz uma inscrição em um dos lados do monumento piramidal de três metros, repintada por autoridades locais em junho.

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Monumento em Lützen, na Alemanha, em homenagem a soldados da URSS presos pelos nazistas e mortos na cidade durante a Segunda Guerra Mundial - Ksenia Ivanova - 17.abr.23/NYT

Do outro lado, inscrita em vermelho brilhante, há uma citação de Josef Stálin em homenagem a 12 prisioneiros de guerra da União Soviética que morreram nas mãos dos alemães enquanto trabalhavam na fábrica de açúcar local. Uma estrela vermelha com foice e martelo dourados adornam o pico da pirâmide.

Lützen não é exceção. Espalhados por toda a Alemanha, mas principalmente no que antes foi a República Democrática Alemã ou Alemanha Oriental, administrada pelos soviéticos, estão mais de 4.000 monumentos protegidos que honram os sacrifícios dos soldados soviéticos na luta contra o nazismo.

Tanques soviéticos estão em pedestais a apenas 800 metros do Parlamento alemão em Berlim, onde o chanceler Olaf Scholz fez seu discurso "Zeitenwende" (mudança de época, em português), em que descreveu a invasão russa à Ucrânia como a maior ameaça à ordem europeia em décadas e declarou que "o mundo depois [do conflito] não será mais o mesmo".

Alguns quilômetros a leste, no que foi a Berlim Oriental, uma estátua de 12 metros de um soldado russo segurando uma criança alemã e uma espada gigante se ergue sobre o parque Treptower.

Esses memoriais, encomendados em sua maioria pelo Exército Vermelho ou por aliados locais, foram derrubados, removidos ou vandalizados em todo o Leste Europeu por décadas, encarados por governos da região como símbolos odientos da opressão de Moscou. A tendência só se acelerou desde o início da guerra, em fevereiro do ano passado.

Na Alemanha, porém —um dos principais apoiadores militares da Ucrânia—, esses mesmos monumentos talvez sejam os exemplos mais marcantes de uma culpa arraigada pelas atrocidades nazistas que continua a permear a identidade nacional.

Em entrevistas em três estados alemães, historiadores, ativistas, autoridades e cidadãos comuns defenderam os monumentos que glorificam um ex-inimigo invasor. Os argumentos são um misto de enraizamento burocrático, aversão a mudanças e, sobretudo, um compromisso sólido de honrar as vítimas da agressão nazista que supera qualquer mudança no contexto global.

"Fomos ensinados a aprender com a dor", diz Teresa Schneidewind, 33, diretora do museu de Lützen. "Cuidamos de nossos memoriais porque eles nos permitem aprender com os erros das gerações passadas."

Os memoriais do Exército Vermelho são apenas alguns dos símbolos que persistem na Alemanha muito tempo depois que os sistemas políticos e os costumes sociais que os sustentavam desapareceram.

O tribunal superior da Alemanha emitiu no no ano passado uma decisão contrária à remoção de uma escultura antissemita medieval de uma igreja onde Martinho Lutero havia pregado. Apesar dos debates, algumas suásticas do Terceiro Reich foram deixadas nos sinos das igrejas.

Essa propensão para o que Schneidewind chama de "acumulação histórica" significa que muitos memoriais soviéticos na Alemanha Oriental trazem o nome de Stálin quase 70 anos depois de o ditador ter sido expurgado dos espaços públicos na própria Rússia.

A maioria dos alemães expressa apoio à Ucrânia e às sanções contra a Rússia. E mais de um milhão de refugiados do país invadido vieram para a Alemanha desde o início da guerra.

Mas as raras tentativas de ativistas antiguerra de chamar a atenção para os monumentos soviéticos não ganharam força, e poucos políticos alemães pediram sua remoção ou mesmo mudanças superficiais neles. Eles dizem que estão de mãos atadas em razão de um pacto assinado há cerca de três décadas.

Em Lützen, cidade de 8.000 habitantes situada entre campos de couve-nabiça, as autoridades gastaram mais de US$ 17 mil (cerca de R$ 85 mil na cotação atual) para pintar seu monumento soviético, poucos dias depois de Scholz se comprometer a entregar o mais novo sistema de defesa aérea do país à Ucrânia.

Mais a leste, a cidade de Dresden destinou este ano fundos para reformar o primeiro monumento erguido pelas forças soviéticas na Alemanha, que inclui estátuas de soldados soviéticos e cenas de tanques T-34 derrubando a infantaria alemã.

Perto dali, trabalhadores da cidade estão expandindo a área de um cemitério militar que abriga os restos mortais de militares soviéticos estacionados na região durante a Guerra Fria.

As autoridades dizem que seu dever de cuidar desses memoriais remonta ao chamado Acordo de Boa Vizinhança, assinado entre a Alemanha e a União Soviética em 1990. Sob esse tratado, cada país se comprometeu a manter as sepulturas de guerra do outro em seu território.

Acredita-se que a maioria dos monumentos do Exército Vermelho na Alemanha tenha sido construída sobre os túmulos de soldados soviéticos ou prisioneiros de guerra. A embaixada da Rússia usou o pacto para chamar a atenção do governo alemão para os monumentos soviéticos que foram danificados ou negligenciados, incluindo o de Lützen.

Um historiador alemão, Hubertus Knabe, pediu uma reavaliação do acordo, que também compromete os dois países com a paz e o respeito pela integridade territorial. Ele diz que, ao invadir a Ucrânia, a Rússia no mínimo anulou o espírito do pacto.

Knabe pediu ainda ao governo de Scholtz que explique por que Moscou continua diretamente envolvida num dos principais memoriais da Segunda Guerra Mundial do país, o Museu Berlin-Karlshorst. Representantes do Ministério da Defesa da Rússia e cinco outras instituições estatais russas fazem parte do conselho do museu, outro retrocesso em relação ao Acordo de Boa Vizinhança.

A secretária de Cultura, Claudia Roth, responsável pelo museu, não respondeu a pedidos de comentário da reportagem.

Em Lützen, os moradores dizem querer manter o memorial do Exército Vermelho como está, uma homenagem ao lugar central ocupado pela pirâmide na vida pública da cidade durante o regime comunista. Alguns se lembram de brincar junto a ele quando frequentavam o jardim de infância próximo, e dizem que vão lutar contra os planos de removê-lo para acomodar um novo supermercado proposto.

"Esta é a nossa história, não importa o que esteja acontecendo na política mundial", diz o prefeito da cidade, Uwe Weiss. "Temos que cuidar disso porque faz parte de nós."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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