Como caso Allan dos Santos pode frear extradição de suposto espião russo aos EUA

Falta de cooperação americana faria com que tendência hoje, no governo brasileiro, seja não enviar Serguei Tcherkasov

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Leandro Prazeres
Brasília | BBC News Brasil

A suposta falta de cooperação americana em processos de extradição como o do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos faz com que a tendência hoje, no governo brasileiro, seja não enviar para os EUA o suposto espião russo Serguei Vladimirovich Tcherkasov. A informação foi repassada à BBC News Brasil por uma fonte com conhecimento do caso em condição de anonimato.

Em abril, os EUA pediram a extradição de Tcherkasov, preso no Brasil e apontado pelo FBI, a polícia federal americana, como um agente de inteligência a serviço do governo russo que se passava por brasileiro.

O blogueiro bolsonarista Allan dos Santos em audiência da CPI das Fake News, em Brasília
O blogueiro bolsonarista Allan dos Santos em audiência da CPI das Fake News, em Brasília - Roque de Sá - 27.mai.20/Agência Senado

Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) enviou nota afirmando que não se pronunciaria sobre o episódio, argumentando que "não comenta casos concretos em andamento". O Departamento de Justiça dos Estados Unidos disse que não se manifestaria sobre o caso.

O Ministério das Relações Exteriores (MRE), a Presidência da República e o Departamentos de Estado dos EUA também foram consultados pela BBC News Brasil, mas tampouco enviaram resposta.

O entrelaçamento dos dois casos acontece devido a uma sequência de eventos.

De um lado, os americanos querem que Tcherkasov seja extraditado para os EUA, não para a Rússia. Do outro, o governo brasileiro tenta, há quase dois anos, que Allan dos Santos seja extraditado para o Brasil.

O caso envolvendo a extradição do blogueiro bolsonarista vem colocando as autoridades de ambos os países em lados opostos desde 2021. Naquele ano, o governo brasileiro solicitou a extradição de Allan dos Santos aos EUA. Em novembro de 2022, o governo brasileiro cancelou o passaporte de Allan dos Santos.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou a prisão preventiva e a extradição de Santos, em 2021, por sua suposta participação em uma organização criminosa com objetivo de desestabilizar as instituições democráticas no Brasil. O blogueiro respondeu, na ocasião, que "as ações do Alexandre de Moraes configuram as ações de um psicopata e de um tirano".

Após quase dois anos sem que o processo avançasse, o atual governo, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), retomou conversas com as autoridades americanas sobre o caso de Allan dos Santos. No entendimento de fontes do governo brasileiro, porém, os diálogos não foram satisfatórios.

Pessoas familiarizadas com o caso ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado argumentam que as autoridades americanas têm dito aos colegas brasileiros que parte dos crimes atribuídos ao blogueiro pelas autoridades brasileiras não constam no tratado de extradição entre Brasil e EUA, firmado em 1965.

Trecho de 'carta garantia' em que o consulado-geral da Rússia oferece suas instalações para receber o suspeito de espionagem Serguei Vladimirovitch Tcherkasov
Trecho de 'carta garantia' em que o consulado-geral da Rússia oferece suas instalações para receber o suspeito de espionagem Serguei Vladimirovitch Tcherkasov - BBC News Brasil

Esse tratado seria uma espécie de "guia" para as extradições entre os dois países. Por isso, os americanos não estariam dispostos a realizar a extradição. A explicação não teria convencido as autoridades brasileiras, uma vez que, caso os americanos não quisessem extraditar Allan dos Santos, eles poderiam, em tese, deportá-lo. O argumento brasileiro é o de que, como seu passaporte foi cancelado, Allan dos Santos estaria nos Estados Unidos na condição de imigrante em situação ilegal.

Questionado, o Departamento de Justiça dos EUA disse, por meio de nota, que não comentaria o episódio. O Departamento de Estado, equivalente a um ministério das Relações Exteriores, não enviou resposta.

Blogueiro e apoiador de Jair Bolsonaro

Allan dos Santos ficou conhecido nos últimos seis anos como uma das principais vozes da direita conservadora no Brasil. Ele também ganhou notoriedade ao se tornar um dos principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A partir de 2020, passou a ser alvo de investigações em pelo menos dois inquéritos sobre sua suposta participação em milícias digitais e na disseminação de ataques a autoridades como o ministro do STF Alexandre de Moraes.

Entre os crimes atribuídos a ele, segundo as investigações, estariam a participação e a promoção de uma organização criminosa cujos objetivos seriam atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral, reforçar a polarização, gerar animosidade na sociedade e promover o descrédito dos Poderes da República. Ainda de acordo com as apurações, Santos seria um dos líderes da organização.

O blogueiro vem negando as acusações e, em suas redes sociais, diz ser vítima de perseguição política.

Em 2020, em meio ao avanço das investigações, ele se mudou para os Estados Unidos. Procurada pela BBC News Brasil, a defesa de Allan dos Santos enviou uma nota. O advogado dele, Renor Oliver Filho, afirma que "o jornalista é alvo de perseguição promovida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes".

"Diante da implacável perseguição do ministro, o jornalista Allan dos Santos se viu obrigado a enfrentar dificuldades para prover o sustento de sua família, composta por sua esposa e três filhos pequenos", diz um trecho da nota. A defesa também afirma que Santos não foi condenado por nenhum crime no STF e que tenta, há mais de um ano, ter acesso aos autos dos processos em que ele figura como investigado.

Russo suspeito de espionagem

Do outro lado desse tabuleiro jurídico-diplomático está Serguei Tcherkasov. Ele está preso no Brasil desde 2022, quando retornou ao país após ser impedido de entrar na Holanda. Lá, tentou entrar no país fazendo-se passar por brasileiro para atuar como estagiário no Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga crimes de guerra. A tentativa aconteceu dois meses depois de a Rússia invadir a Ucrânia.

Tcherkasov cumpre pena de 15 anos de prisão numa penitenciária federal em Brasília pelo uso de documentos falsos e é investigado por lavagem de dinheiro. Documentos obtidos pela BBC News Brasil mostram que, para a PF, há indícios de que Tcherkasov atuava como um agente de inteligência russo.

Ainda não há indícios de que ele teria espionado instituições, pessoas ou empresas no Brasil. No país, ele admitiu ter usado documentos falsos e se passar por um brasileiro chamado Victor Müller Ferreira.

Tcherkasov, no entanto, negou atuar como espião. Em uma audiência no STF, recusou-se a responder quando foi questionado sobre o tema. Ele ainda responde a um inquérito por lavagem de dinheiro.

As suspeitas levantadas pelos americanos, até agora, são de que ele usava a sua personalidade falsa brasileira para se infiltrar em instituições de ensino nos EUA e na Europa para obter informações de interesse russo. Nos Estados Unidos, Tcherkasov é acusado de ter atuado como agente de inteligência sem autorização em território americano e de coletar informações de forma ilegal.

Segundo a acusação, ele faria parte de um programa de espionagem russo chamado "Ilegais", considerado a elite dos serviços de inteligência do país. O programa consiste no recrutamento e treinamento de jovens russos e no envio deles para diversas nações. Para não despertar a atenção de possíveis inimigos, eles assumem uma personalidade totalmente diferente e vivem como se fossem nativos.

Historicamente, a Rússia não admite o uso desse tipo de espião. A embaixada russa no Brasil tem, reiteradamente, se negado a comentar o caso. Em agosto do ano passado, antes do pedido dos EUA, o governo brasileiro recebeu um pedido de extradição para Tcherkasov enviado por Moscou. Na solicitação, a Rússia não admite que ele era um espião. A alegação é a de que Tcherkasov é acusado de crimes como tráfico de drogas em seu país. Ao longo do processo, o russo declarou que quer ser entregue à Rússia.

O relator do caso no STF, Luiz Edson Fachin, autorizou a entrega de Tcherkasov aos russos, mas condicionou o procedimento ao fim de investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre suspeitas de lavagem de dinheiro possivelmente associadas às suas atividades de inteligência no Brasil.

No Brasil, a decisão final sobre extraditar ou não uma pessoa é atribuição do Poder Executivo. Por isso, a definição sobre Tcherkasov possivelmente recairá sobre o governo Lula.

Extradição e política internacional

Para o professor de direito penal internacional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rui Dissenha, condicionar uma extradição a fatores políticos é uma prática comum em outros países.

"Na maior parte dos países, a extradição tem duas fases. Uma jurídica, e outra, política. Isso acontece porque as extradições são procedimentos que podem influenciar a política externa de um país e, por isso, em parte dos casos, quem tem a decisão final é o governo, não o Judiciário", afirmou.

Para o advogado e também professor de direito internacional da UFPR Frederico Glitz, é pouco provável que o governo brasileiro deixaria explícito que uma eventual recusa em extraditar Tcherkasov aos Estados Unidos teria como motivo a demora na extradição de Allan dos Santos. "A legislação brasileira prevê esse grau de discricionariedade ao Poder Executivo. Dificilmente o governo daria essa justificativa aos Estados Unidos formalmente porque poderia ensejar algum questionamento judicial", afirmou Glitz.

O militante italiano Cesare Battisti, escoltado por policiais, desembarca em Roma após ser preso na Bolívia
O militante italiano Cesare Battisti, escoltado por policiais, desembarca em Roma após ser preso na Bolívia - Alberto Pizzoli - 14.jan.19/AFP

Ele cita, no entanto, que esse tipo de disputa política pode ter consequências nas relações do Brasil com os EUA. Ele menciona como exemplo a extradição do militante italiano de esquerda Cesare Battisti, condenado por homicídio na Itália e que fugiu para o Brasil. Em 2010, o STF determinou que ele poderia ser extraditado, mas, após a decisão, o governo do então presidente Lula não autorizou sua entrega ao país europeu. Battisti só foi entregue à Itália em 2019, após fugir do Brasil e ser localizado na Bolívia.

"A decisão de não entregá-lo à Itália teve repercussões nas relações com o país. Quando o Brasil pediu a extradição de Henrique Pizzolato, envolvido no caso do mensalão, os italianos dificultaram o processo."

O professor Dissenha rebate eventuais críticas de que condicionar a extradição de Tcherkasov à de Allan dos Santos poderia ser interpretada como "chantagem". "Não classificaria como chantagem. Trata-se de um espaço de negociação. Não necessariamente essa negociação vai acontecer de forma aberta."

Contexto conturbado

A indefinição em torno das extradições de Tcherkasov e Allan dos Santos acontece em um momento marcado por dúvidas quanto ao posicionamento do governo brasileiro em relação aos Estados Unidos.

O principal ponto de discordância vem sendo a Guerra da Ucrânia, conflito em que Washington dá apoio aos ucranianos contra a Rússia. Lula diz que sua posição é de neutralidade e que ele tenta convencer países não envolvidos no conflito a criar condições para debater o processo de paz.

Nos últimos meses, no entanto, Lula tem dado declarações que chamaram a atenção da comunidade internacional ao responsabilizar tanto o presidente russo, Vladimir Putin, quanto o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, pela guerra. Em visita à China, em abril, Lula chegou a dizer que os Estados Unidos deveriam parar de "incentivar" a Guerra da Ucrânia.

Na semana passada, durante participação na reunião do G7, no Japão, Lula alterou o tom, condenou a invasão russa, mas voltou a dizer que, no momento, nem Putin nem Zelenski estariam interessados em discutir a paz na região. "Sinto que nem Putin nem Zelenski estão falando em paz neste momento."

Lula também criticou o discurso do presidente dos EUA, Joe Biden, durante a cúpula do G7. Segundo o brasileiro, o líder americano defendeu uma postura de confronto com a Rússia e que isso não ajuda na resolução da guerra. "O discurso do Biden é o de que tem que ir para cima do Putin até ele se render, pagar tudo o que estragou. Esse discurso não ajuda, na minha opinião", disse.

Ainda durante sua passagem pelo Japão, Lula chegou a receber um pedido de Zelenski para uma reunião bilateral. Segundo o governo brasileiro, teriam sido abertas três possibilidades de horário para o encontro com o líder ucraniano, mas Zelenski não foi à reunião com o presidente brasileiro.

Ao falar sobre o assunto, Lula disse que não faltarão oportunidades para se encontrar com o presidente da Ucrânia, mas afirmou ter ficado chateado com a situação. "Não fiquei decepcionado, fiquei chateado porque eu gostaria de encontrar com ele e discutir o assunto, por isso marquei com ele aqui no hotel. Apenas isso. Veja, o Zelenski é maior de idade, ele sabe o que faz", afirmou Lula.

O governo ucraniano, por sua vez, afirmou que o encontro não foi possível devido a "conflito de agendas".


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