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Sylvia Colombo

Coroação de Charles 3º mostra por que monarquia e suas intrigas ainda nos tocam

Poucos querem retorno de regimes absolutistas, mas muitos desejam continuar a assistir a essa novela

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Londres

Num trem lotado do metrô de Londres, a rotina foi quebrada no momento em que os auto-falantes do vagão emitiram a famosa frase "mind the gap" (cuidado com o vão) na voz do rei Charles 3º. A gravação, feita para ser executada durante o final de semana da coroação, fez os passageiros pararem para ouvi-la.

Turistas gravaram o registro, fãs da monarquia sorriram e festejaram, mas a maioria só levantou os olhos, curiosa, voltando rapidamente a prestar atenção às telas de seus celulares ou aos livros que carregavam. As reações à coroação do novo monarca, com predominância da apatia, podia ser resumida naquele trem.

O rei Charles 3º e a rainha Camilla em carruagem durante a cerimônia de coroação, em Londres
O rei Charles 3º e a rainha Camilla em carruagem durante a cerimônia de coroação, em Londres - Loic Venance/AFP

Junto a essa apatia estão questionamentos em torno da atualidade e da utilidade da monarquia, o que leva ao debate sobre as transformações de valores e a percepção sobre instituições ao longo do tempo.

Poucos, mesmo entre os fãs mais fervorosos da família real que foram agitar bandeiras nas ruas neste sábado (6), gostariam de restabelecer a monarquia absolutista no Reino Unido, ainda que, até pouco tempo, de uma perspectiva histórica, uma porção considerável da população considerava a ideia de ser regida por um monarca não apenas válida como uma determinação imposta por valores religiosos.

A Revolução Gloriosa, na Inglaterra, ocorreu em 1688, e a Francesa, entre 1789 e 1799. Pode ser muito tempo para um indivíduo, mas pouco para um capítulo na história da humanidade. Assim, o período em que reis e rainhas comandaram com força persiste no imaginário de homens e mulheres de hoje.

Num momento de grande instabilidade política global, não é exercício inútil refletir sobre as raízes do poder e o que é democracia, embora a racionalidade aponte que quem tinha razão era Winston Churchill: "A democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras já experimentadas ao longo da história".

Os que defendem a existência de uma monarquia hoje têm seus argumentos. Alguns são pura alucinação, e outros, válidos, como o que defende que os chefes de governo e de Estado sejam figuras independentes e que uma representação de Estado exercida por uma família daria a um país mais consistência.

A ideia é que famílias, através de várias gerações, teriam mais condições de assumir compromissos de longo prazo em relação a certas causas e valores, uma habilidade que não poderia ser exercida por políticos eleitos, justamente porque eles deixam seus cargos depois de um período determinado.

Esse raciocínio não está distante do adotado por clãs que, por exemplo, administram grandes empresas. Por que o personagem de Logan Roy, de "Succession", foi comparado ao Rei Lear de Shakespeare? E por que a série, cheia de intrigas em torno de como os filhos reagem antes e depois da morte do pai, ante a possibilidade de se tornarem líderes de um conglomerado de mídia, nos mantêm tão vidrados?

"Succession" é apenas uma versão atual de tantas ficções em que relações familiares e poder estão amarrados. Alguma razão faz com que nós, hoje, ainda consumamos com entusiasmo histórias que tenham esse tipo de enredo. Por isso a ideia de monarquia e as intrigas em torno dela ainda nos tocam.

E, no futuro breve, parece haver combustível para mais rusgas entre os membros da família real britânica. Charles está determinado a diminuir o tamanho dos gastos e dos problemas que terá de gerir. Já vimos os recentes afastamentos dos "problemáticos" príncipes Andrew e Harry. O primeiro, por ser acusado de abusar uma menor de idade, o segundo, por ter exposto em seu livro os muitos podres de seus parentes.

Consciente do anacronismo da monarquia e da necessidade de torná-la mais barata e palatável, Charles reduzirá o número de integrantes com funções públicas e já anunciou que restringirá a distribuição de títulos, assim como o grupo que toma grandes decisões. Também deve propor um reforço das ações da família real no que diz respeito a agendas mais urgentes, como a crise climática e a imigração.

Seria um ajuste aos novos tempos, uma "modernização", como ocorreu antes, por exemplo, para salvar a imagem da família, afastando do trono o herdeiro nazista, com a abdicação forçada de Edward 8º.

Paralelamente à coroação, houve diversas reuniões entre líderes globais para discutir problemas atuais, como a Guerra da Ucrânia. Elas poderiam ter acontecido sem uma festa para colocar a coroa em Charles, claro, mas a relevância da monarquia britânica facilitou o encontro de muitos deles em um mesmo lugar.

O debate sobre a monarquia existirá quando William, e depois, seu filho, George, chegarem ao trono? Aí é futurologia. Mas, por ora, há muita gente querendo continuar a assistir a essa novela.

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