Descrição de chapéu Mundo leu

Podcast mergulha em crises do Haiti e descreve sangria das instituições

País vive espécie de acefalia política, criminalidade generalizada, falta de representação democrática e caos humanitário

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Pamela White foi embaixadora dos Estados Unidos no Haiti durante o governo de Barack Obama. Ela conta que recentemente conversou com um alto funcionário das Nações Unidas, para quem "o Haiti não corre o risco de se tornar um Estado falido". "Isso porque ele já se transformou nesse tipo de Estado."

Esse foi um dos muitos diagnósticos pessimistas enunciados em podcast da BBC dedicado ao impasse institucional haitiano. A pequena república do Caribe, com seus 11,7 milhões de paupérrimos habitantes —tem a maior taxa de miséria das Américas–, está numa encruzilhada com dois dramas paralelos e agudos.

A polícia do Haiti usa bombas de efeito moral para dispersar manifestantes que protestavam contra o premiê Ariel Henry
A polícia do Haiti usa bombas de efeito moral para dispersar manifestantes que protestavam contra o premiê Ariel Henry - Ricardo Arduengo - 17.out.22/Reuters

De um lado, há uma espécie de acefalia política. O presidente Jovenel Moïse foi assassinado em julho de 2021. Quem tenta governar no lugar dele é o primeiro-ministro Ariel Henry que, no entanto, não teve seu mandato confirmado pelo Parlamento, simplesmente porque nenhum Parlamento existe hoje no país. Além disso, Henry tem sua legitimidade contestada por quase todos.

Do outro lado, o Haiti caiu em mãos do crime organizado, que passou praticamente a ocupar o espaço deixado pela retração do Estado (polícia, Judiciário, governo). A jornalista americana Jacqueline Charles, especializada em Haiti no jornal Miami Herald, diz que as estradas que levam à capital, Porto Príncipe, foram todas ocupadas por essas gangues. Elas cobram pedágio para deixar entrar alimentos para a população, que, sem dinheiro para esses gêneros inflacionados, acaba mergulhando em fome.

Shaun Ley, jornalista da BBC, revela que, para se contrapor ao crime, formaram-se grupos armados civis com a designação de "vigilantes", que recentemente massacraram e queimaram vivos criminosos na capital. Uma espécie de guerra civil.

Um professor da Universidade da Virgínia, o haitiano Robert Fatton, afirma que apenas uma pressão internacional poderia levar a um governo de transição, segundo a receita do Acordo de Montana, em que partidos e grupos da sociedade civil tentaram inutilmente atingir o entendimento. Esse grupo se opõe ao primeiro-ministro, que por sua vez já reprimiu duramente a tentativa de eleição de um novo presidente.

O problema, no entanto, diz Jacqueline Charles, "é que não existe no Haiti um Nelson Mandela". "A população não acredita em democracia e não se sente representada pelos acordos políticos." E demonstra conformismo com as facções criminosas.

Elas se tornaram mais ativas depois da morte de Moïse. Só em abril, foram 600 os assassinatos em Porto Príncipe. Desde o início do ano, 300 pessoas foram sequestradas e soltas após pagamento de resgate. A ex-embaixadora Pamela White diz que não há mais adolescentes que nos faróis de trânsito se ofereciam para limpar o para-brisa dos automóveis. Esses jovens foram recrutados pelo crime organizado.

Dentro dessa sequência horrorosa de más notícias, não se fala tanto em eleição presidencial como forma de estabilização institucional. É preciso que um governo provisório venha antes, para restabelecer a confiança na política.

Enquanto isso, prossegue a sangria nas instituições. Neste ano, cerca de 200 médicos haitianos deixaram o país. "Não há mais oncologistas em Porto Príncipe", diz Robert Fatton. Ele também cita declaração de funcionário da ONU para quem, em todo o Haiti, há apenas 35 policiais simultaneamente nas ruas.

A polícia entrou em colapso, e centenas de seus integrantes estão emigrando. O consulado americano tem uma sala em separado para conceder vistos a esses cidadãos. "Não há mais policiais de armas e uniformes novos, treinados em Miami ou em Nova York. Tudo isso acabou", afirma White.

De certa forma, o Haiti afundou mais que em 2010, quando se acreditou que, com um trágico terremoto, ele tivesse chegado ao fundo do poço. Foram 230 mil mortos, entre os quais um quarto de todos os servidores públicos. E o país ainda está esperando pelos US$ 10 bilhões de ajuda prometidos pela comunidade internacional.

É como se, de vez em quando, todos nos esquecêssemos do Haiti. E a razão foi dada há muitos anos pelo ainda senador Joe Biden. Ele disse na época que, contrastando com a importância dos Bálcãs, em guerra civil, é como se o Haiti pudesse afundar no mar, e ninguém sentiria falta dele.

Hoje Washington aposta que o caminho da estabilidade estaria em apoiar Ariel Henry, que, por sua vez, tem dado provas reiteradas de incompetência ao não conseguir enfrentar seu maior inimigo atual: o crime organizado.

É um desfecho inglório para uma história que começou bem. O Haiti proclamou sua independência em 1804. E aproveitou para abolir a escravidão. Mas depois tudo desandou, com a escassez desse bem essencial e moderno que é a democracia.

The Real Story: What's Gone Wrong in Haiti?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.