Descrição de chapéu Independência, 200

Revolução no Haiti inspirou resistência negra em meio à independência do Brasil

Levante de escravizados que completa 231 anos assustou elites brasileiras, que temiam insurreição semelhante no Império

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Belo Horizonte

No caldeirão da Independência do Brasil, há quase 200 anos um batalhão de pardos colocou a elite de um Recife revolucionário em estado de alerta. Em 22 de julho de 1824, escutou-se a seguinte estrofe na capital da província pernambucana: "Qual eu imito a Cristóvão / Esse imortal haitiano, / Eia! Imitai ao seu povo, / Ó meu povo soberano!"

O contexto era a Confederação do Equador, que tentou constituir no Nordeste uma república independente do restante do Brasil. Contudo, entre os revoltosos, havia pessoas negras dispostas a dar um passo além da república para fazer com que o movimento adquirisse um caráter de libertação racial —a exemplo do que havia acontecido na Revolução Haitiana na virada do século 18 para o 19.

No país do Caribe, uma rebelião de negros escravizados iniciada em 22 de agosto de 1791, há 231 anos, deflagrou uma longa guerra racial e civil, que culminou na abolição da escravatura na região e na independência da ilha de Saint-Domingue, então a mais rica colônia francesa.

pintura mostra cena de batalha que acontece na subida de um morro, onde estão algumas palmeiras. na imagem, de bastante violência gráfica, soldados brancos e negros se enfrentam. um dos soldados negros ergue a cabeça de um homem branco para o exército inimigo
'A Batalha de Saint-Domingue', pintura de Janvier Suchodolski (1845) - Museu do Exército Polonês (Varsóvia)

Já os pardos pernambucanos inspiravam-se em Henri Christophe, um dos comandantes negros da revolução, para fazerem valer sua própria guerra. O plano era atacar os comércios europeus e assassinar as famílias brancas ricas da cidade.

Assim arquitetou Emiliano Mundurucu, o líder do batalhão citado, que espalhou uma proclamação impressa conclamando a população interessada a participar da revolta. Ele foi contido pelo major Agostinho Bezerra Cavalcanti, líder do batalhão de homens pretos, que dissuadiu o grupo.

pintura de um homem negro sentado. ele usa um macacão laranja, uma jaqueta azul, uma boina bege e carrega uma arma.
Emiliano Mundurucu em acrílica sobre tela de Moisés Patrício (2020), destacada no livro "Enciclopédia Negra"; não foram encontrados registros de sua aparência - Reprodução/Companhia das Letras

Mundurucu foi uma figura que vai além da história do Brasil. Tudo indica que tenha nascido em 1791, filho de uma mulher negra e de um homem branco. Recebeu educação, ingressou na carreira militar e participou do ciclo revolucionário pela independência no Recife —especialmente entre 1817 e 1824, a região foi palco de revoltas e revoluções contra o governo do Rio de Janeiro, chefiado por dom Pedro 1º.

Para evitar a repressão, fugiu para os Estados Unidos, onde moveu o primeiro processo contra a segregação racial americana. Viveu ainda no próprio Haiti e na Grã-Colômbia, atual Venezuela.

Para entender a história de sua luta, ao menos em Pernambuco, é necessário voltar a 1817, quando outra revolução de caráter liberal agitou a província. Como conta o historiador Marcus Carvalho, professor da Universidade Federal de Pernambuco, o governo que os revoltosos instituíram durante 75 dias promoveu algumas mudanças na sociedade.

Eles não concordavam com a escravidão e se comprometeram a efetivar uma abolição na república recém-fundada, ainda que lenta e gradual. Também baixaram um decreto que acabava com a obrigação do tratamento senhorial, o "vossa mercê".

Segundo Carvalho, mesmo que isso pareça "uma besteira no mundo atual", a mudança na forma de tratamento trouxe a fagulha de um sentimento de igualdade entre as pessoas livres da região. Fagulha semelhante à vista no Haiti quando o francês Légér-Félicité Santhonax assegurou a igualdade política entre brancos e negros libertos. "Em 1817, os negros passaram a desrespeitar os brancos. E isso foi afastando o apoio senhorial [à Revolução Pernambucana]."

Essa tensão racial ganhou um novo capítulo em 1823, quando batalhões de pretos e pardos tomaram Recife e Olinda durante oito dias.

Nesse período, Pedro da Silva Pedroso, um homem negro, foi aclamado governador. Numa referência ao Haiti, ele se manifestou: "Morram os caiados!". O termo recupera a imagem do pó de cal para se referir à elite mestiça que se embranquecia conforme ficava mais rica.

"Depois da Pedrosada, ninguém mais foi contra a monarquia no Brasil", afirma Carvalho. Essa perspectiva se repete na análise de Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense que integra a Rede de Historiadores Negros. De acordo com ela, as elites do país, mesmo com ideais políticos divergentes, preferiram se unir num projeto em comum a correr o risco de enfrentar uma insurreição negra.

"Existe uma estruturação efetiva, forças políticas e econômicas que estão organizando o Estado Nacional Brasileiro nascente para atender a seus interesses e ideários de mundo", diz. A manutenção da ordem escravista seria um deles.

"De fato, o Haiti é um marco do ponto de vista dos temores das elites do Atlântico Negro", afirma o historiador Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe. "E isso também chega ao seio da massa de escravizados e de homens de cor libertos."

Com receio da ebulição de um clima de ódio racial, os senhores de escravos se valeram de algumas estratégias para que a Revolução do Haiti não ocorresse no território da América do Sul.

Se escravizados representavam a grande maioria da população da ilha de Saint-Domingue, chegando a 85% do total de habitantes, no Brasil havia um acordo tácito para que eles não passassem de cerca de 40%. Era também corrente a ideia entre os negociantes de comprar escravizados de diferentes regiões, o que dificultava a organização entre eles.

Foram ainda criadas "válvulas de escape", como diz Lopes dos Santos, por meio das alforrias concedidas e compradas. Eram formas de fazer com que pessoas escravizadas vislumbrassem saídas pacíficas da condição a que foram submetidas.

Ainda assim, não foram poucas as rebeliões organizadas por escravizados no século 19. Levantes na Bahia, por exemplo, horrorizaram um anônimo informante da Coroa Portuguesa, que escreveu, entre 1822 e 1823: "Se se continua a falar dos direitos dos homens, de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a palavra fatal: liberdade".

Ele reportava em meio à guerra pela independência na província. E continuou: "Então toda a revolução acabará no Brasil com o levante dos escravos, que, quebrando suas algemas, incendiarão as cidades, os campos e as plantações, massacrando os brancos e fazendo deste magnífico império do Brasil uma deplorável réplica da brilhante colônia de São Domingos".

Por outro lado, como detalha o livro "A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista", de Marco Morel, a recepção às notícias da América Central foram diversas e nem sempre negativas.

Na imprensa, essa experiência muitas vezes aparecia como um "exemplo positivo de afirmação da soberania nacional", como Morel escreve, especialmente num momento em que o Brasil desejava se libertar do jugo de Portugal. Abolir a escravidão, contudo, não era uma opção corrente.

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