Brasil endossa pedido de democracia na Nicarágua após imbróglio

Resolução aprovada no plenário da OEA manifesta preocupação com perseguições praticadas por ditadura de Ortega

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Redigida depois de amplo debate na OEA (Organização dos Estados Americanos), uma resolução que pede democracia na Nicarágua foi aprovada nesta sexta-feira (23) pelo grupo de trabalho responsável na entidade pelo país liderado pelo ditador Daniel Ortega.

O Brasil endossou o documento, mas o processo de debate até sua versão final gerou ruídos e pressão pública de expatriados do regime, que pediam ao governo Lula apoio e a expressão de críticas mais robustas contra Ortega. Mais de 50 nicaraguenses que tiveram a cidadania retirada se manifestaram.

Apoiadores de Daniel Ortega carregam foto do ditador durante manifestação pró-regime em Manágua, capital da Nicarágua
Apoiadores de Daniel Ortega carregam foto do ditador durante manifestação pró-regime em Manágua, capital da Nicarágua - 11.fev.23/Reuters

O texto final da resolução faz um chamado ao "efetivo exercício da democracia representativa" na Nicarágua, referência a um termo usado na Carta Democrática Interamericana, espécie de "bíblia" da OEA.

Entre as mudanças propostas pela diplomacia brasileira estava substituir essa proposta inicial, que pedia o retorno da democracia na Nicarágua, por um pedido de "fortalecimento da democracia". Em meio às discussões, a proposta de Brasília foi vazada por Arturo McFields, ex-embaixador da Nicarágua na organização, e provocou críticas.

Para os nicaraguenses exilados, a proposta pretendia "colocar em dúvida a brutalidade sem precedentes da ditadura" e "ofendia familiares e todas as vítimas da repressão do Estado totalitário".

Interlocutores do Itamaraty disseram à Folha na ocasião que o objetivo da mudança era salientar preocupação com o que se passa em Manágua sem fechar a porta de diálogo para uma possível negociação com Ortega, o que justificaria a escolha de linguagem mais cuidadosa.

Também criticaram o vazamento das propostas brasileiras, alegando se tratar de uma tentativa de desqualificar o Brasil como um mediador importante nos debates sobre o regime centro-americano.

Muitas das demandas brasileiras permaneceram na versão final da resolução, elaborada pelo grupo de trabalho que também conta com a participação de membros dos governos de Chile, Costa Rica e EUA.

Numa delas, a versão inicial propunha dizer que a OEA estava "profundamente alarmada" com os relatos de repressão. O Brasil propôs manifestar "extrema preocupação", e assim o texto se manteve.

A principal mudança está no acréscimo feito por Brasília de um chamado ao diálogo no trecho segundo o qual a OEA está disposta a se "comprometer construtivamente com a Nicarágua a fim de cumprir obrigações internacionais em matéria de direitos humanos".

O texto, que posteriormente também foi aprovado no plenário da OEA, pelo conjunto dos países-membros manifesta preocupação com os casos de mais de 3.000 ONGs que tiveram sua situação jurídica anulada e seus bens confiscados desde 2018, uma das quais a Cruz Vermelha.

A resolução também manifesta profunda preocupação com denúncias de perseguição a membros do clero e de comunidades religiosas alvos de detenções arbitrárias, hostilidade e expulsão do país.

Na quinta (22), horas antes de deixar a Itália, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que, na conversa que teve com o papa Francisco, no dia anterior, no Vaticano, comprometeu-se a falar com Ortega sobre temas como a prisão do bispo Rolando Álvarez.

"Pretendo falar com o Ortega a respeito de liberar o bispo. Não tem por que ficar impedido de exercer a sua função na igreja, não existe essa possibilidade, então eu vou tentar ajudar", afirmou o líder brasileiro.

À frente da diocese de Matagalpa, Álvarez foi detido por pregar sermões críticos ao regime. Em fevereiro, recusou-se a deixar o país quando Ortega transferiu para Washington mais de 200 presos políticos. Como consequência, ele teve não apenas a cidadania cassada como foi transferido de prisão domiciliar para uma cela de segurança máxima. O religioso foi ainda sentenciado a 26 anos de prisão pela Justiça subjugada a Ortega por ser considerado um "traidor da pátria".

O Brasil foi representado na Assembleia-Geral da OEA pela secretária-geral do Itamaraty, Maria Laura da Rocha, primeira mulher a ocupar o posto. "Brasília acredita que a cooperação e a abertura de canais de diálogo são essenciais e a melhor forma de contribuir para a superação dos desafios em matéria de direitos humanos", disse ela.

A diplomata também criticou o uso de sanções, em consonância com o discurso tradicional defendido pelo Brasil. "Meras condenações ou o recurso a sanções raramente contribuem para a superação dos desafios de direitos humanos. Mais do que passar atestados de culpa de eficácia duvidosa, o Brasil está disposto a contribuir para promover o diálogo e a aproximação entre as forças políticas."

Em março, um mês após Manágua retirar a nacionalidade de mais de 300 opositores, o Brasil disse na ONU estar disponível para receber os expatriados. A movimentação veio após um grupo independente de especialistas do Conselho de Direitos Humanos divulgar um relatório no qual compara as práticas adotadas por Ortega e Rosario Murillo, a número 2 da ditadura, ao regime nazista de Adolf Hitler.

Lula tem se distanciado em seu terceiro mandato da figura de Ortega, outrora um aliado. A principal liga da relação sempre se deu pelo PT, um parceiro da Frente Sandinista de Libertação Nacional, o partido de Ortega que, antes de guinar para o autoritarismo, capitaneou a luta contra a ditadura Somoza no país.

As legendas fazem parte do Foro de São Paulo, grupo que reúne parte da esquerda latino-americana. Neste ano, o Foro tem encontro marcado em Brasília entre os dias 29 de junho e 2 de julho, e espera-se que estejam presentes lideranças sandinistas, o que também gerou manifestação de nicaraguenses.

Em nota, eles pedem que os partidos integrantes do Foro condenem o "regime de terror Ortega-Murillo", "que viola todas as liberdades civis, aniquila a democracia e a justiça e submete o povo a uma opressão pior do que a imposta pela ditadura anterior [de Somoza]".

Entre as consequências da repressão nicaraguense está a intensificação do êxodo do país. Um relatório do Acnur, a agência da ONU para refugiados, mostrou que nicaraguenses foram a quarta nacionalidade que mais pediu asilo em outros países no ano passado, atrás de venezuelanos, afegãos e cubanos. Ao todo, 165,8 mil nicaraguenses solicitaram asilo em 2022, quase 50% a mais do que no ano anterior.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.