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Restrição a procissões na Semana Santa na Nicarágua amplia racha com Igreja Católica

Ditadura aperta cerco e vigia celebrações do feriado após trocar farpas com o papa Francisco

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São Paulo

A tarde da última segunda-feira (3) apenas começava em uma alfândega no leste de Honduras quando duas senhoras viram um padre chegar a pé. Ainda com a batina da missa rezada pela manhã, ele vinha da Nicarágua —país que, sob domínio do ditador Daniel Ortega, estabeleceu uma cruzada contra a Igreja Católica nos últimos cinco anos.

O panamenho Donaciano Alarcón foi deixado na fronteira entre os dois países centro-americanos por policiais nicaraguenses, que o acusam de incitar a população contra a ditadura em suas missas. "Quando eu cruzei a fronteira, me senti perdido. Não sabia o que fazer nem para onde ir, e não tinha telefone", afirma. Alarcón conseguiu falar com colegas com a ajuda das duas senhoras —que estavam ali por não terem conseguido entrar na Nicarágua horas antes.

Donaciano Alarcón na catedral de San Pedro Sula, em Honduras, após ser expulso da Nicarágua - Delmer Martinez - 5.abr.23/AFP

A despeito dos 45% de católicos entre 6,8 milhões de habitantes (dados de 2022 da consultoria CID Gallup), Ortega comprou uma briga pública com a igreja. Neste ano, a Semana Santa acontece após trocas de críticas entre o papa Francisco e o líder nicaraguense, que ordenou o fechamento da embaixada do Vaticano no país há quase um mês.

"Com muito respeito, não tenho escolha a não ser pensar em um desequilíbrio na pessoa que lidera", afirmou o pontífice sobre Ortega, em março. "É como se estivesse trazendo a ditadura comunista de 1917 ou a ditadura hitlerista de 1935."

Semanas antes, o ditador havia estimulado o embate. "Se vamos falar de democracia, que se eleja também o papa por voto direto do povo. Que seja o povo quem decida, não a máfia que está organizada no Vaticano". Sob esse raciocínio, Orteja já chamou a igreja de "ditadura perfeita".

Internamente, religiosos sofrem com fechamento de rádios católicas, assédio policial em celebrações e prisão de sacerdotes. As procissões, que deveriam voltar à normalidade nesta Semana Santa após a pandemia de Covid-19, estão restritas em boa parte do país —o regime tem alergia a qualquer reunião pública desde que protestos massivos eclodiram nas ruas em 2018 contra uma reforma da Previdência.

A contenção, porém, tem efeito limitado e até contrário em alguns casos. Nesta sexta-feira (7), centenas de pessoas mantiveram a tradição religiosa em algumas cidades do país. Em San José de Cusmapa, por exemplo, no oeste da Nicarágua, fiéis se revoltaram no último domingo (2) após a polícia reprimir um padre que saiu da igreja ao final da missa para benzer ramos. Alarcón havia passado ali pela manhã para pegar a batina que usaria no dia seguinte, e percebeu que foi seguido até o local.

No dia seguinte, antes da primeira missa da manhã, ele foi abordado por policiais sob acusações de organizar procissões, incitar a população e dizer que se sentia assediado no país. Alarcón nega todas as afirmações, menos a última. "Isso eu disse", afirmou aos policiais. "Porque me sinto assediado." Quando voltava da missa, foi levado pela polícia e deixado na fronteira.

Ele afirma que há informantes em todas as missas, e que eles provavelmente ouviram no domingo sua menção ao papa Francisco e ao bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez —algo de praxe em qualquer celebração católica, mas que, na Nicarágua, é polêmico. Isso porque Álvarez está preso desde agosto do ano passado pelo que o regime chama de "traição à pátria", crime usado contra qualquer opositor que se notabilize no país.

No final de março, a ditadura foi forçada a mostrar o bispo por pressão da sociedade civil. "Graças a Deus estou bem, com muita força interior, muita paz no Senhor e na Virgem Santíssima", disse ele em vídeos oficiais, nos quais aparece tomando um café da manhã ao lado de dois de seus irmãos.

O bispo de 56 anos não era visto desde 10 de fevereiro, quando foi condenado a 26 anos de prisão em um julgamento a toque de caixa. Um dia antes, ele havia se negado a subir no avião que deportou 222 prisioneiros políticos aos EUA —enquanto eles voavam, o regime tirou a nacionalidade dos opositores, estratégia repetida com outras 94 pessoas na semana seguinte.

A relação entre o líder nicaraguense e a Igreja Católica já foi diferente. Antes de ser tornar ele mesmo um ditador, Ortega foi um dos líderes da Revolução Sandinista, que derrubou o regime da família Somoza no final dos anos de 1970.

Naquela década, florescia na América Latina a Teologia da Libertação, abordagem cristã que dá ênfase à justiça social e que encontrou terreno fértil nas esquerdas. Grande parte da região estava sob o jugo de regimes autoritários naquele momento, inclusive o Brasil, e setores da Igreja Católica apoiaram revoltas populares em diversos países —no caso da Nicarágua, o sandinismo. Esse apoio começaria a sofrer desgastes poucos anos depois, no primeiro mandato de Ortega após a democratização, nos anos de 1980.

Nas manifestações de 2018, ponto de inflexão no autoritarismo do país, a igreja foi a mediadora do diálogo entre o líder e a oposição até a repressão a um protesto matar 15 pessoas e deixar mais de 200 feridas. Na época, a Conferência Episcopal da Nicarágua considerou as mortes uma agressão sistemática e organizada e anunciou que não voltaria à mesa de diálogo para dar fim à crise enquanto a população continuasse sendo "reprimida e assassinada". Até o fim daquele ciclo de protestos, ao menos 355 pessoas seriam mortas, segundo a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos).

"Na Semana Santa deste ano não consegui ir em nenhuma missão", conta Pilar, 22, que preferiu usar um nome fictício para falar à Folha, sobre as atividades de evangelização nas comunidades do interior. "Já faz um tempo que suspenderam viagens para fazer missões por causa de toda essa situação."

Localizada em uma cidade tradicional pelas festas cristãs, sua paróquia conseguiu fazer procissões este ano, mas limitadas e com acompanhamento da polícia. O medo do regime, opina Pilar, é que a reunião pública saia do controle e vire uma manifestação.

"Dentro da nossa fé, pedimos pelos presos políticos, pelos que estão sofrendo nas prisões, pelos exilados, pelos migrantes, pelas pessoas que estão sofrendo devido à situação econômica", diz. "Tudo que a gente inclui naturalmente numa oração a Deus já é um perigo para eles."

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