Descrição de chapéu Financial Times América Latina violência

Fentanil aumenta violência no México e produz crise entre produtores de papoula

Substância é a causa da maioria das mais de 85 mil mortes anuais por overdose de opioides nos EUA e no Canadá

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Christine Murray
Manzanillo (México) | Financial Times

Sergio Emmanuel Martínez, novo diretor da alfândega no maior porto do México, foi sequestrado em um domingo de maio na saída de um restaurante no oeste do país. No dia seguinte, seu corpo foi encontrado ao lado de uma rodovia —no quarto assassinato de um funcionário do porto em menos de dois anos.

Manzanillo é um movimentado centro do comércio mundial, mas é também um ponto de entrada no país de substâncias químicas vindas da China que são usadas na produção do opioide sintético fentanil.

Cápsulas com metanfetamina, preparadas pelo Cartel de Sinaloa, em Culiacan, no México
Cápsulas com metanfetamina, preparadas pelo Cartel de Sinaloa, em Culiacan, no México - Alexandre Meneghini - 4.abr.23/Reuters

Como outros centros comerciais na costa do Pacífico, sua importância para o comércio de drogas aumentou fortemente com o boom do fentanil, desencadeando uma batalha violenta entre cartéis pelo controle do porto. O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, disse que a morte de Martínez se relaciona com medidas tomadas para barrar as importações ilegais.

"As pessoas que vêm trabalhar na alfândega são submetidas a pressões", disse a prefeita de Manzanillo, Griselda Martínez. "Se aceitam o que um grupo propõe, são mortas. Se não aceitam, também são mortas."

Nos últimos dez anos, o fentanil tornou-se a maior causa de morte de adultos jovens nos Estados Unidos. O comércio ilegal de drogas mexicano se adaptou a esse cenário, mudando sua ênfase de drogas de origem vegetal para drogas sintéticas. Foi criado um ramo novo, enxuto e altamente lucrativo do narcotráfico, com menos trabalhadores e custos mais baixos –mas o mesmo grau de violência.

A mudança vem causando atritos em dois dos relacionamentos mais importantes de Washington, com a China e o México, e está rapidamente virando uma prioridade para os republicanos antes da eleição presidencial de 2024, com candidatos propondo medidas cada vez mais radicais contra os dois países.

Barrar a oferta da droga, porém, não é fácil.

Em Manzanillo, guindastes erguem contêineres recém-chegados que carregam desde roupas e leite em pó até autopeças. Caminhões com aço laminado aguardam em estradas vicinais o momento de começar a circular, e homens usando coletes de alta visibilidade saem de moto levando documentos.

O porto movimenta 9.500 unidades por dia, incluindo 30% das importações marítimas do país. Especialistas dizem que, mesmo sem ameaças e corrupção, a alfândega mexicana, agora sob o controle da Marinha, teria dificuldades para localizar, em meio a esse volume imenso de produtos, as quantidades minúsculas de substâncias químicas necessárias para a produção de fentanil. Para complicar ainda mais, muitos dos ingredientes também podem ser usados para finalidades legais, como o próprio fentanil.

O volume necessário da substância para suprir o mercado dos EUA por um ano pesa o equivalente a cinco toneladas e caberia em um único caminhão, segundo pesquisadores da Rand Corporation —toda a heroína consumida nos EUA em um ano daria cerca de 125 toneladas. No caso da cocaína, seriam ainda mais.

"Não estamos falando de uma agulha no palheiro, mas de um furo em uma agulha no palheiro", disse Peter Reuter, professor de política pública na Universidade de Maryland. As substâncias químicas são levadas do porto para os estados do norte do México, onde são misturados e comprimidos para formar pílulas, disseram especialistas. Diferentemente dos grandes campos de papoulas ou maconha, que dependem de condições do tempo propícias para seu cultivo, os laboratórios de drogas sintéticas podem ser montados em pouco tempo em casas e passar despercebidos mesmo em áreas urbanas.

Em vez de empregar dezenas de milhares de trabalhadores agrícolas, toda a indústria mexicana do fentanil pode funcionar com "cozinheiros" estimados em algumas centenas, que na maioria não são químicos diplomados, disse Reuter. O crescimento do fentanil parece ter afetado especialmente a produção de heroína, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime —o cultivo da papoula no México ainda está muito abaixo do nível máximo que já alcançou.

Em um laboratório rudimentar nas colinas de Sinaloa, dois rapazes adolescentes usando luvas de borracha estavam sentados diante de uma mesa com pilhas de fentanil em pó, "cozinhado" previamente em condições não controladas, segundo uma reportagem da emissora mexicana Televisa. Eles disseram encher 21 mil cápsulas por semana e receber cerca de US$ 330 (R$ 1.563).

"Não é muito dinheiro, mas em todo lugar pagam muito pouco. Além disso, é um tédio", diz um dos rapazes mascarados que estavam produzindo as drogas para o cartel de Sinaloa.

De lá, as drogas são transportadas pela fronteira por "mulas", muitas vezes mulheres americanas, segundo indiciamento recente nos EUA. Algumas delas atravessam a fronteira em jatinhos particulares. Depois, segundo especialistas, o fentanil é distribuído por redes semelhantes às usadas para outras drogas.

Hoje o fentanil é a causa da maioria das mais de 85 mil mortes anuais por overdose de opioides nos EUA e no Canadá. Os impactos negativos de muitas outras drogas atingem países de todo o mundo, mas as mortes por fentanil, desenvolvido nos anos 1950 como analgésico, concentram-se na América do Norte.

A epidemia nos EUA foi alimentada pela prescrição de opioides em excesso, mas hoje o fentanil também é misturado a muitas outras drogas ilegais. Os cartéis mexicanos estão até mesmo diluindo o fentanil com outras substâncias, como o tranquilizante de uso veterinário xilazina. A Europol já expressou preocupação com a difusão da droga, mas ela ainda não decolou em grande escala no continente.

Legisladores americanos de ambos os partidos dizem que o México precisa fazer mais para barrar o fornecimento de fentanil. Alguns chegam a sugerir uma intervenção militar dos EUA contra os cartéis.

Na reunião que teve em junho com o líder chinês, Xi Jinping, em busca de um degelo das relações, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, destacou a necessidade de cooperação sobre esse tema. Tanto México quanto China, que afirma ter tomado "medidas sem precedentes" para controlar o fentanil e substâncias semelhantes, argumentam que a demanda dos EUA é a verdadeira fonte do problema.

O México, em especial, diz que já está pagando um preço alto. Desde que os cartéis passaram a enfocar a produção de fentanil para suprir a América do Norte, algo que, segundo um indiciamento recente nos EUA teria começado por volta de 2014, a violência no país latino-americano cresceu. Os homicídios alcançaram números recordes entre 2018 e 2020 e desde então diminuíram apenas um pouco.

O fentanil tem sido uma fonte de conflito entre as duas maiores organizações do narcotráfico do país, o cartel de Sinaloa e o Cartel Jalisco Nova Geração (CJNG), disse Falko Ernst, analista sênior do México no think tank International Crisis Group. "A substância definitivamente se tornou uma grande impulsionadora da violência no México", disse Ernst. "Para quem tem acesso, é uma fonte enorme de renda."

Parte das regiões montanhosas pobres do México, onde se cultivavam papoulas para produzir heroína, sofreram uma crise econômica após a adesão dos consumidores ao fentanil.

Dezenas de milhares de agricultores em Guerrero, Sinaloa e outros Estados agora viram sua renda cair para um décimo do que ganhavam no auge do boom da heroína nos EUA, em 2015-17, segundo Romain Le Cour Grandmaison, especialista sênior da ONG Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional.

"Há a ideia de que as drogas são o produto mais rentável do mundo, uma indústria à prova de recessão, mas o que temos visto é uma crise econômica sem precedentes em torno de uma droga", disse Le Cour.

Apesar das evidências em contrário, Obrador afirma que o fentanil não é produzido no México. Ao mesmo tempo, seu governo se comprometeu a adotar medidas para "reduzir drasticamente" a entrada no país de substâncias químicas precursoras. As medidas devem incluir a intensificação da vigilância nos portos.

Em Manzanillo, o cartel de Sinaloa e o CJNG disputam o controle da cidade portuária. Em 2019, dois pistoleiros de motocicleta tentaram matar a prefeita Martínez, do partido Morena, do presidente.

Seus guarda-costas a salvaram, e hoje, quatro anos depois, ela vive em um prédio do governo, distante de sua família, protegida por mais de uma dúzia de agentes armados. "Ter uma equipe de seguranças sempre te cercando é algo que te tira a vida", disse ela, destacando que os homens que tentaram matá-la ainda não foram detidos. "Isso nunca deveria ser visto como normal. As coisas não deveriam ser assim."

Tradução de Clara Allain

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