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Héctor Abad Faciolince

Um míssil russo, ou melhor, o inferno, caiu sobre nós na Ucrânia

Romancista colombiano relata ataque que atingiu restaurante em Kramatorsk e matou escritora ucraniana Victoria Amelina

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Héctor Abad Faciolince

Escritor colombiano, é autor de 'A Ausência que Seremos', entre outros livros

Até dias atrás, eu não fazia nem ideia do que era um míssil balístico Iskander. Na realidade não sei nada sobre armas; fui declarado foragido do serviço militar e nunca na vida disparei uma pistola.

Poderia dizer que sou o cúmulo do pacifista: um covarde. Mas, como foi um Iskander russo o míssil que matou na minha frente a escritora Victoria Amelina, me senti obrigado a averiguar.

Restaurante destruído por ataque russo no centro da cidade de Kramatorsk, na Ucrânia
Restaurante destruído por ataque russo no centro da cidade de Kramatorsk, na Ucrânia - Genia Savilov - 29.jun.23/AFP

Esse brinquedo russo, para começo de conversa, custa cerca de US$ 3 milhões, pesa quatro toneladas e meia, pode ser lançado de 500 km de distância, desloca-se a velocidades supersônicas (mais de 2.000 metros por segundo), e sua precisão é tamanha que sua margem de erro não passa de cinco metros ao redor de seu alvo. E, sim, essa arma de precisão extrema explodiu a dez metros de nós, no último dia 27.

Para que tanta crueldade, tanto gasto, tanta pontaria para atacar um simples restaurante?

Os serviços de inteligência da Rússia –leia-se: seus serviços de desinformação e de difusão de mentiras— declararam, primeiro, que não tinham sido eles, mas o Exército da Ucrânia; depois disseram que a pizzaria Ria fora atacada por engano; corrigiram em seguida para afirmar que o alvo era legítimo porque o segundo andar desse local "era um posto da 56ª Brigada de Infantaria Motorizada das Forças Armadas da Ucrânia".

Mas o restaurante não tinha segundo andar e brigada alguma operava nele. Qualquer correspondente estrangeiro que já tenha estado em Kramatorsk terá comido ali e sabe que o local é (quero dizer, era) tudo menos um posto militar. Frequentavam-no, isso sim, soldados em seus dias de folga, que costumavam se encontrar com familiares ali. Era um ponto de encontro habitual sobretudo dos habitantes de Kramatorsk, cidade que no início da invasão russa tinha 200 mil habitantes e que hoje tem apenas 80 mil.

Então por que tanta despesa e tanta precisão para um alvo civil? Victoria nos disse isso em outro cenário: como lição e castigo a uma população que não quer ser russa nem recebeu os russos de braços abertos.

O que estávamos fazendo em Kramatorsk, a 40 km do front, e naquele restaurante? A história precisa ser contada desde o começo, razão pela qual lhes vou roubar alguns parágrafos de tempo. Na realidade, Sergio Jaramillo (alto comissário da paz e ex-vice-ministro da Defesa da Colômbia) e eu havíamos ido a Kiev a convite da Feira do Livro: eu ia autografar exemplares de um romance meu publicado recentemente em ucraniano, e Sergio, apresentar a campanha "Aguenta, Ucrânia!". Como eu também faço parte da campanha desde o início e como tenho tentado fazer com que colegas da América hispânica se unam a essa iniciativa, me somei a essa iniciativa a favor da Ucrânia. Estavam na apresentação a Nobel ucraniana Oleksandra Matviichuk; o presidente do Pen Club da Ucrânia, Volodimir Iermolenko; a jornalista colombiana Catalina Gómez, como moderadora, e a pobre Victoria Amelina. Eu estava ao lado dela.

Uma amiga da escritora ucraniana Victoria Amelina, morta devido aos ferimentos provocados por um ataque russo, segura retrato da autora durante o funeral dela, em Kiev
Uma amiga da escritora ucraniana Victoria Amelina, morta devido aos ferimentos provocados por um ataque russo, segura retrato da autora durante o funeral dela, em Kiev - Alina Smutko - 4.jul.23/Reuters

Nossa apresentação incluía um vídeo que terminava com Paquito D’Rivera tocando o hino nacional da Ucrânia no clarinete. Isso comoveu até as lágrimas o público numeroso da feira. Isso foi no sábado.

O plano era retornar à Polônia na segunda, mas ocorreu a Sergio e Catalina que deveríamos levar nossa campanha mais longe e que, além disso, deveríamos documentar mais de perto os horrores e os crimes cometidos pelos russos. O covarde que sou inventou várias desculpas para não ir, mas todas as minhas objeções foram resolvidas por meus amigos. Em um jantar com Victoria, no domingo, ela se entusiasmou tanto com a solidariedade sul-americana que disse que ela própria queria nos acompanhar a Donetsk.

Faria uma última viagem antes de ir à França com bolsa de um ano, onde queria terminar seu livro de denúncia dos crimes russos de guerra. No dia seguinte, uma segunda-feira (eu sem querer ir e Victoria querendo), madrugamos para percorrer 550 km em nove horas de viagem de Kiev a Kramatorsk.

A companhia de Victoria foi fundamental para conhecer os horrores da guerra e as atrocidades cometidas pelo Exército russo, tanto nas primeiras semanas da invasão como no ano transcorrido depois.

Ela nos levou para ver a casa de onde os russos levaram o poeta Volodimir Vakulenko, para depois torturá-lo, dar-lhe dois tiros e enterrá-lo numa vala comum, como qualquer judeu dos anos 1940. Com minha obsessão pelo Holocausto, fiz minha própria contribuição. Paramos nos arredores de Kharkiv para ver um monumento em homenagem a mais de 15 mil vítimas judias assassinadas e enterradas em valas comuns. Em sua campanha para supostamente "desnazificar" a Ucrânia, o presidente mais parecido com Hitler que se conhece desde 1945, Putin, destruiu a menorá que assinalava o local do crime dos nazistas.

Vimos e entrevistamos oficiais e soldados do Exército ucraniano. De nazistas eles não têm nada, posso assegurar. Se têm culpa de algo, é de ainda serem um exército demasiado soviético, ou seja, paranoico (o que se entende, numa guerra), paquidérmico e ineficaz (o que é muito prejudicial numa guerra).

Conhecemos um jovem soldado charmoso, amigo de Victoria, com um sorriso seráfico constante, que nos explicou que, ainda que ele sempre tivesse sido um pacifista convicto, também estava convencido de que Putin e os invasores usam e entendem apenas uma linguagem: a da força. O diálogo e a diplomacia fracassaram. Queiramos ou não, a única alternativa que temos hoje é combater o mal com as armas.

No último ano, Victoria havia se afastado da ficção e se dedicado a pesquisar e documentar com detalhes os crimes de guerra cometidos pelos agressores. Há um crime de guerra que ela não poderá documentar pessoalmente: o que cometeram com ela. Vou dedicar os próximos meses a escrever sobre esse crime atroz, a contá-lo minuciosa e detalhadamente, por cima da propaganda e da mentira dos russos.

É algo que devo à justiça, em abstrato, e à justiça que algum dia deve ser feita por esse crime atroz cometido contra uma grande colega muito valente, uma escritora da idade de minha filha que, por sua vez, deixa órfão um menino de dez anos de idade. Devo isso pelo menos a esse menino, para que dentro de outros dez anos ele possa saber exatamente como mataram sua valente, brilhante e encantadora mãe.

Por enquanto, lhes conto o último instante de consciência de Victoria. Eu estava diante dela no terraço do restaurante. Como vigorava a lei seca, ela pediu uma cerveja sem álcool. Sergio havia enchido um copo para mim com gelo e algo parecido com suco de maçã. Victoria olhou meu copo: "Parece uísque", disse e sorriu. Nesse momento, o Iskander, o inferno, caiu do céu sobre nós. Agora, Victoria reside no céu. Não no sentido cristão ou muçulmano. Nesse céu imaterial e mental, muito humano, que chamamos de memória.

Tradução de Clara Allain

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