Escritor que sobreviveu a míssil na Ucrânia lembra hora em que 'inferno caiu'

Colombiano Hector Abad Faciolince relata últimos instantes de colega morta e diz que Lula é simpático demais à Rússia

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Bogotá

O escritor colombiano Héctor Abad Faciolince brincava com a ucraniana Victoria Amelina na pizzaria Ria, em Kramatorsk, na Ucrânia, que eles precisariam brindar sem álcool, já que ele estava proibido na região. Então, uma explosão repentina interrompeu a atmosfera festiva do local, na terça passada.

homem grisalho com barba e óculos de camisa e casaco manchados de escombros
O escritor colombiano Hector Abad Faciolince após sobreviver a ataque a míssil em pizzaria na Ucrânia - Reprodução/Twitter

Ambos haviam passado alguns dias juntos com Sergio Jaramillo, ex-ministro da Defesa da Colômbia, e a jornalista Catalina Gómez. Jaramillo divulgava sua campanha "Aguente, Ucrânia", enquanto os dois escritores haviam participado da Feira do Livro de Kiev.

Abad Faciolince é reconhecido principalmente por ser autor do comovente "A Ausência que Seremos", que relata a história de sua infância em uma Medellín dominada pela violência. Por sua vez, Amelina estava investigando e documentando os crimes de guerra cometidos pela Rússia para um projeto futuro.

Um ataque de foguetes russos, porém, transformou o encontro informal e relaxado num banho de sangue. Ao menos 11 pessoas morreram e 40 ficaram feridas. A Folha conversou com Abad Faciolince sobre o ocorrido.

Folha - Como você está?
Hector Abad Faciolince - Fisicamente, não sofri nem um arranhão. A única sequela é um zumbido constante nos ouvidos. Emocionalmente, ainda não posso dizer. Sei que estou muito afetado, muito triste, abalado por ter visto tantos feridos e tanta morte ao redor. Atordoado pelo estrondo do míssil russo. Sei que nunca esquecerei essa experiência e que levará muito tempo para entender completamente.

Qual era o intuito da viagem à Ucrânia?
Fomos convidados para a Feira do Livro de Kiev. A feira é de um valor incrível. Fui convidado pelas minhas editoras da Compás Books, que publicaram a tradução de um livro meu para o ucraniano. Jaramillo foi convidado para apresentar a campanha "Aguente, Ucrânia!", da qual também participei.

Essa campanha não é para pedir paz, assim, simplesmente. É para rejeitar a invasão da Rússia e manifestar nossa solidariedade ao povo ucraniano que está se defendendo. Músicos, escritores, atores e artistas de toda a América Latina participaram dessa campanha.

Eu não fui como um jornalista imparcial ou neutro. Não sou neutro. Nessa invasão imperial inaceitável, estou ao lado da Ucrânia e da defesa de sua soberania.

Na apresentação da campanha, estavam presentes várias pessoas, Oleksandra Matviichuk, prêmio Nobel da Paz, Volodimir Yermolenko, presidente do Pen Club da Ucrânia, Catalina Gómez, jornalista de guerra colombiana e correspondente da France 24. Também nos acompanhava a jovem e magnífica romancista ucraniana Victoria Amelina [ela morreu quatro dias depois da explosão, numa UTI local].

Como foram os últimos momentos antes da explosão?
Tivemos dois dias muito intensos em Donetsk, no leste da Ucrânia. Amelina estava documentando os crimes de guerra da Rússia na região. Ela nos levou a lugares devastados. No final do segundo dia, para agradecer tudo o que ela tinha feito por nós, a quisemos convidar para um restaurante que ela já conhecia e onde todos os correspondentes de guerra na Ucrânia vão quando estão na cidade de Kramatorsk, a pizzaria Ria.

Como era o ambiente?
O local estava cheio, na hora do rush que ocorre pouco antes do toque de recolher, que é às 21h. Os restaurantes já começam a despachar os clientes às 20h15. Havia crianças, jovens, mulheres, idosos e também soldados, é claro. Não há lugar nessa região onde não haja soldados. Também há proibição de álcool.

Qual a última imagem antes da explosão?
Tínhamos acabamos de pedir as pizzas. Eu me lembro da minha, quattro formaggi. Estava brincando com Amelina porque não podíamos brindar com álcool de verdade. Ela estava com uma cerveja sem álcool e eu com um suposto suco de maçã com gelo. Foi nesse momento que o inferno caiu sobre nós.

Fomos atingidos por um míssil russo de alta precisão, guiado remotamente, planejado para atingir exatamente ali. Não foi um erro, foi algo absolutamente calculado naquele momento para causar o máximo dano possível no restaurante.

Estávamos no terraço, e por isso, pelo menos a maioria de nós sobreviveu. Infelizmente, Victoria não. Ela estava brindando e sorrindo comigo quando ouvi o estrondo mais terrível que já ouvi em minha vida.

Quando me levantei do chão, ela estava quieta, ereta, limpa, parecia não ter nem um arranhão. Mas estava imensamente pálida e quieta, muito quieta. Não reagia. Foi terrível. Continuará sendo terrível pelo resto da minha vida.

Como avalia a posição praticamente neutra de países como Brasil e Colômbia, assim como outros da América Latina, com relação à Guerra da Ucrânia?
Acho lamentável essa posição neutra. Mais do que isso, é inaceitável.

Na América Latina, há uma longa história de defesa da soberania dos países. Não tivemos guerras na região por um século, precisamente porque o Brasil, mesmo sendo maior, não quer invadir o Paraguai, nem o Equador, nem a Colômbia quer invadir o Panamá. Sempre rejeitamos as intervenções dos Estados Unidos.

Mas agora parece que não soa grave a invasão de uma potência mundial atômica, de uma potência imperial, a Rússia, em um país independente e soberano, a Ucrânia. Isso é inexplicável e indefensável do ponto de vista do direito internacional.

O que acha da participação de Lula nesse debate sobre a invasão?
Eu teria votado em Lula no Brasil, é claro, contra Bolsonaro. Curiosamente, Lula está se comportando com a Rússia da mesma forma que Bolsonaro —com simpatia. Isso é muito triste. Inaceitável. Vergonhoso.

Você pensou que iria morrer?
Sim, a primeira coisa que veio à minha mente foi —fomos mortos. E também senti um grande pesar e culpa em relação à minha mulher e meus filhos. Pensei que estava ferido, porque estava coberto de manchas negras, que pensei ser sangue, mas nada doía. Isso é o que os feridos às vezes dizem, que as balas não doem.

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