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Ditadura da Nicarágua avança sobre universidades e ameaça pensamento livre

Regime que já fechou outras 3.719 entidades e eliminou boa parte da oposição toma renomada instituição de ensino

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São Paulo

Já era noite no último dia 17 quando enviados da ditadura da Nicarágua retiraram as letras que formavam as palavras "Universidad Centroamericana" da placa da portaria principal da instituição. A tarefa foi concluída no dia seguinte, quando o painel passou a indicar que ali funcionaria a Universidade Nacional Casimiro Sotelo Montenegro.

Foi assim que um dos mais prestigiados centros universitários do país se tornou a vítima mais recente do regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo. Segundo os líderes, a faculdade fundada pela Companhia de Jesus em 1960 atuava como um "centro de terrorismo" e organizava "grupos criminosos armados e encapuzados".

Fachada da Universidade Centroamericana, em Manágua - 16.ago.23/AFP

Os bens da universidade foram transferidos para o Estado, que passou a gerir a instituição e a indicar nomes para cargos de confiança. "Agradecemos a Deus, à Revolução Popular Sandinista, ao nosso presidente, o comandante Daniel Ortega Saavedra, e à nossa companheira e vice-presidente, Rosario Murillo", afirmou o novo reitor, Alejandro Genet Cruz, em seu discurso de posse, no dia 18 deste mês.

A UCA, como era conhecida, era uma universidade privada sem fins lucrativos. Embora seus alunos pagassem mensalidades, oferecia bolsas e, até março de 2022, contava com parte dos 6% do orçamento público que o Estado direcionava ao ensino superior.

A instituição era gerida por jesuítas, ordem que também sofreu um ataque do regime ao ser dissolvida na última quarta-feira (23). O novo nome da universidade homenageia um líder estudantil que se tornou mártir após ser assassinado em 1967 pela ditadura dos Somoza, contra a qual Ortega lutou —hoje, críticos afirmam que este tem se aproximado cada vez mais daquele.

O destino da UCA é o mesmo que outras 3.719 organizações da sociedade civil tiveram nos últimos cinco anos, incluindo 26 universidades privadas, de acordo com um levantamento da imprensa local —ela mesma atua no exterior. Isso significa que Ortega, que eliminou praticamente todos os contrapesos ao seu regime, parece querer avançar sobre uma das últimas fronteiras do pensamento livre.

Não há oposição organizada, já que partidos políticos críticos ao casal no poder não conseguem atuar —nas últimas eleições, em 2021, sete postulantes à Presidência foram detidos acusados de lavagem de dinheiro e traição à pátria. O Legislativo e o Judiciário, por sua vez, estão tomados por simpatizantes, e as últimas quatro prefeituras que representavam alguma resistência, no norte do país, foram tomadas por policiais armados em julho do ano passado.

"Esse golpe na UCA é também simbólico", afirma o cientista político nicaraguense Humberto Meza, pesquisador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ele compara a tomada da instituição com uma situação hipotética em que a USP, a Unicamp e as PUCs, por exemplo, fossem confiscadas por um governo totalitário no Brasil. "A UCA tinha prestígio único na Nicarágua."

Agora, um dos melhores laboratórios de biologia molecular do país está sob a batuta do regime, que passa a guardar também um acervo do Instituto de História de mais de 70 mil itens, incluindo gravuras rupestres e coleções históricas de jornais.

Em 2009, quando tinha 50 mil peças, a coleção foi agraciada com o prêmio Prince Claus, de uma fundação holandesa que leva o mesmo nome. Na ocasião, a instituição afirmou que o acervo continha arquivos "que documentavam a história da Nicarágua desde os tempos coloniais até a Revolução Sandinista, além de outros que estão relacionados com a história da América Central". O trabalho do instituto, agora rebatizado de "Heróis da Nicarágua", foi chamado de "um milagre que se tornou possível graças ao trabalho árduo e contínuo" dos acadêmicos envolvidos na iniciativa.

Os Estados Unidos condenaram a tomada da universidade pela ditadura por meio de um porta-voz do Departamento de Estado, Vedant Patel, que afirmou que a ação "representa uma erosão das normas democráticas e um sufocamento do espaço cívico". "Esse é um centro de primeiro nível de excelência acadêmica, de pesquisa independente e de esperança para o futuro da Nicarágua", afirmou ele.

A notoriedade da UCA foi o que motivou Maya, 23, a escolher a universidade, na qual concluiu os estudos em administração de empresas em julho. Sob a condição de não revelar seu nome verdadeiro, a estudante disse à Folha que não deve retirar o seu diploma no mês que vem. Ela tenta encontrar instituições de outros países para fazer a equivalência de disciplinas e obter o documento de conclusão do curso.

"Não quero ter um título que leve o nome da Universidade Nacional Casimiro Sotelo. Passamos por muitas coisas para que o diploma saia assim. Não foi nessa universidade que estudei", diz. A instituição em que se formou, conta, tinha aulas que abordavam criticamente assuntos como gênero e desenvolvimento. "Tínhamos contato com muitos aspectos do país, inclusive da parte rural, muito ignorada na Nicarágua."

Maya ingressou na UCA em fevereiro de 2018, meses antes de o país entrar em convulsão devido a uma impopular reforma da Previdência promovida por Ortega. Naquela época, a universidade já conhecia as pressões do regime, mas a situação pioraria muito após a repressão às manifestações de abril, que deixaram ao menos 355 mortos, segundo a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos).

O primeiro período da estudante foi concluído a distância, antes de as aulas serem suspensas no segundo semestre em razão da crise social e política. Quando retornou ao campus, ele já não era mais o mesmo, conta ela. "Era uma falsa normalidade." Maya diz ter visto o clima de medo aumentar na faculdade, que se esvaziava devido ao cerco econômico do regime e à migração dos alunos.

A crescente perseguição fez o ex-diretor do departamento de sociologia da UCA, Juan Carlos Gutiérrez Soto, 51, exilar-se na Costa Rica em junho de 2021. "Por mim, a universidade seria o lugar em que eu me aposentaria", afirma. "Mas não é possível planejar a vida em um regime autocrático."

O sociólogo é uma das 94 pessoas que tiveram a nacionalidade nicaraguense retirada pela ditadura em fevereiro deste ano —número que engrossou a lista de 222 presos políticos que, postos em um avião e expulsos da Nicarágua em direção aos EUA, tiveram o mesmo destino dias antes.

Assim, tudo que está em nome de Soto no país pode ser expropriado, incluindo uma casa. "Não existo no meu país. Se buscarem nos registros oficiais, não encontrarão minha carteira de identidade nem meu passaporte", conta. Livros que ficaram na Nicarágua chegaram no domingo (27) à sua casa em San José —com as folhas de rosto arrancadas, já que tinham seu nome e poderiam provocar desconfiança no regime.

Para o sociólogo, a última fronteira de controle é a internet. Ele diz que não se surpreenderia, porém, se a ditadura passasse a limitar o acesso à rede nesse cenário de terra arrasada. "Uma leitura mais profunda de mundo parece-me cada vez mais difícil [na Nicarágua]. Se não há maneiras para processar a informação de maneira crítica, o pensamento será mais doutrinado."

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