Descrição de chapéu The New York Times drogas

Estado dos EUA testa multa a usuários de fentanil e vê número de overdoses crescer

Em Oregon, usuários não são presos, mas precisam pagar US$ 100 ou participar de teste de drogas e avaliação de saúde

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jan Hoffman
Portland | The New York Times

Nos últimos dois anos e meio, o estado do Oregon, nos Estados Unidos, lançou um experimento incomum para tentar coibir o número crescente de dependentes de drogas e de mortes por overdose.

Pessoas pegas com quantidades pequenas de drogas ilícitas para uso pessoal, incluindo fentanil e metanfetamina, são punidas apenas com uma multa de US$ 100 (R$ 492), que pode ser cancelada se elas participarem de um teste de drogas e uma avaliação de saúde. O objetivo é reservar os processos legais para os grandes traficantes e tratar a dependência sobretudo como uma emergência de saúde pública.

-
Socorristas carregam usuário de fentanil que sofreu uma overdose - Jordan Gale - 7.mai.23/The New York Times

Quando a proposta, conhecida como Medida 110, foi aprovada por quase 60% dos eleitores do Oregon, em novembro de 2020, a pandemia já havia esvaziado o centro de Portland de trabalhadores e turistas. Mas a população de rua da cidade estava crescendo, especialmente após os protestos contra a polícia que se alastraram pelo país naquela época.

Meses depois de a medida entrar em vigor, em fevereiro de 2021, o consumo de drogas ao ar livre, algo que por muito tempo foi feito às escondidas, passou a acontecer em plena vista de todos, com pessoas sentadas em círculos em parques ou encostadas contra placas de ruas, fumando fentanil esmagado sobre papel alumínio.

Desde então, a incidência de overdoses no estado apenas cresceu. Hoje, barracas de pessoas sem teto se enfileiram por muitas calçadas em Portland. As listas de espera para fazer tratamento antidrogas continuam a crescer, e os interessados precisam aguardar meses. Alguns políticos e organizações comunitárias estão pedindo que a Medida 110 seja substituída por leis rígidas contra a posse de fentanil. Outros pedem que mais tempo e mais recursos sejam dedicados ao problema.

Segue um mosaico de vozes e imagens de Portland hoje.

Trabalhando no centro da cidade

No trajeto que percorre a pé para chegar a seu trabalho no Forte Portland —um café e bar de vinhos no subsolo de um edifício comercial—, Jennifer Myrle se desvia de agulhas usadas, cacos de vidro e fezes humanas. Ela conta que frequentemente há alguém desmaiado diante da entrada do estabelecimento que opera com seu irmão, impedindo sua passagem. Houve um dia em que um homem entrou no café cambaleando, deitou-se sobre um sofá, tirou a camisa e os sapatos e se recusou a sair.

"Às 16h, a rua às vezes parece uma central de traficantes", disse Myrle. "Pelo menos 20 a 30 pessoas usando balaclava, moletom com capuz e mochila, geralmente de moto ou patinete. Não adianta nada chamar a polícia."

-
Jennifer Myrle no Forte Portland, bar que ela e seu irmão operam no centro de Portland - Jordan Gale - 16.jul.23/The New York Times

Apesar da turbulência, ela gosta de fazer uma caminhada em seus intervalos do trabalho. "Mas às 11h30 da manhã da terça-feira, andei até o quarteirão entre a Target e a Nordstrom e no meio de tudo", contou, ela viu uma mulher fazendo sexo oral em um homem.

Myrle tem plena consciência de estar assistindo a uma confluência de problemas sociais que vêm de longa data, incluindo crises de saúde mental e habitação. "Mas uma parte muito grande tem a ver com as drogas", disse ela.

Patrulhando as ruas com uma arma e Narcan

O policial David Bauer, da delegacia de Portland, patrulha o centro da cidade numa mountain bike levando uma arma, um bloco de intimações e o medicamento Narcan, usado para reverter overdoses.

Ele passa seu turno prendendo traficantes que estão com grande quantidade de pílulas azuis de fentanil, preenchendo formulários de multa de US$ 100 para pessoas que usam drogas em público e dando Narcan a pessoas prestes a desmaiar, uma emergência com a qual costuma topar pelo menos uma vez por dia.

Essas cenas são retratadas na conta de Instagram do Esquadrão Central de Ciclistas da Polícia de Portland, que tem gerado reações intensas.

"Recebo um monte de feedback nas mensagens diretas: ‘Vocês deviam deixar os viciados morrer, não dar Narcan a eles’", contou Baer. "É duro ler isso, porque interagimos com essas pessoas todos os dias. Eu já socorri a mesma pessoa múltiplas vezes."

-
Policial David Baer emite multa por consumo público de fentanil no centro de Portland - Jordan Gale - 16.mai.23/The New York Times

Uma parte grande de seu trabalho é feita de preencher intimações da Medida 110. "Dizemos ‘ei, você não pode fumar metanfetamina ou fentanil na calçada ou no playground’. A reação das pessoas às vezes é realmente agressiva. Elas pensam que têm direito, pensam que as drogas são legais."

"Eu digo ‘a cerveja é legal, mas mesmo assim é proibido beber cerveja em público.’ Então a gente entrega a intimação e um cartão para fazer um teste de drogas. Ou a pessoa diz que não quer fazer tratamento ou ela fala ‘ok, vou ligar para esse número’. Duas horas mais tarde a gente dá de cara com a pessoa de novo e ela está fumando ou até tendo uma overdose."

Vivendo na calçada

"Portland é um pedacinho de paraíso para um viciado sem teto", disse Noah Nethers, que estava vivendo com a namorada em uma barraca laranja na calçada, encostada na cerca de uma igreja. Ali, os dois fumam e injetam fentanil e metanfetamina em si mesmos.

Ele listou as vantagens: poder usar drogas quando quiser, não sofrer tanto com assédio de policiais e contar com mais traficantes, sempre à procura de novos fregueses se mudando para o paraíso —isso significa que há fartura de drogas e o preço é baixo.

As desvantagens: viver em uma barraca não é bem o paraíso, disse ele, especialmente quando pessoas de barracas vizinhas, sob o efeito de metanfetamina, batem nele com tacos de beisebol.

-
Noah Nethers, usuário de fentanil em Portland - Jordan Gale - 18.jul.23/The New York Times

Além disso, avisos de despejo tinham acabado de ser colocados nas barracas, mandando todo mundo sair do local até 8h do dia seguinte. Nethers não sabia onde moraria. Mas falou que, se não saísse de lá, a polícia juntaria suas coisas, as guardaria por um mês e depois as jogaria no lixo.

A Medida 110 também não diminuiu o ódio e o escárnio que ele recebe de pessoas que têm casa, empregos, geladeiras cheias e férias remuneradas. Nethers se ressente fortemente desses olhares hostis, entre outras razões porque por algum tempo as vidas deles se assemelharam às dessas pessoas.

Quando estava crescendo em Detroit, ele sonhava em tornar-se professor de inglês e escrever livros. Mas quando estava na quinta série, começou a fuçar a gaveta de meias de seu irmão mais velho e encontrou seu estoque de maconha. Quando chegou ao ensino médio, ele já estava fumando comprimidos de oxicodona esmagados. Depois disso, experimentou a heroína.

Ele entrou e saiu de clínicas de reabilitação, cinco ou seis vezes. Entrou e saiu da prisão.

Quatro anos atrás ele se mudou para Portland, onde vive uma irmã sua. Mas as drogas o chamavam. Depois veio a pandemia. Finalmente ele se rendeu ao apelo das ruas. "Resisti enquanto foi humanamente possível, tentando encontrar os traficantes de heroína. Mas eles tinham sumido", disse Nethers, que está com 42 anos. "Então embarquei na montanha-russa do fentanil."

Ultimamente ele vem tentando encarar suas provações diárias a sério.

"Quero frear o avião antes que ele bata de frente na encosta da montanha", disse Nethers. "Por favor, Deus, me diga que existe um jeito de sair desta."

Recebendo inúmeros pedidos de ajuda

Solara Salazar é diretora do Centro Cielo de Tratamento, que atende adultos jovens em Portland, e hoje recebe cerca de 20 chamados por dia sobre serviços de reabilitação. "E na maioria dos casos não temos como ajudar", disse ela.

O Centro Cielo oferece tratamento ambulatorial e alojamento sem drogas. É ótimo para pessoas que já começaram a controlar sua dependência. Mas Salazar, que já sobreviveu a dependências de metanfetamina, oxicodona e fentanil, vive recebendo pedidos de ajuda de pessoas em crise aguda que precisam de um leito imediatamente em um programa residencial.

Ela recebe requisições de auxílio de pessoas que estão saindo da desintoxicação hospitalar e ainda não passaram pela reabilitação em regime de internação. Os pacientes do Oregon que dependem do Medicaid podem aguardar meses por um leito, disseram ela e outras pessoas ouvidas pela reportagem.

"Não é possível pular uma etapa e esperar que as pessoas tenham sucesso no tratamento", disse ela. "De qualquer maneira, temos um índice de sucesso muito baixo."

-
Solara Salazar, diretora executiva do Centro Cielo de Tratamento e ex-usuária de fentanil, lidera uma cerimônia de formatura de reabilitação em Portland - Jordan Gale - 26.abr.23/The New York Times

O financiamento da promessa de serviços aumentados da Medida 110 vem da receita da tributação da maconha no Oregon. Após um início vagaroso, mais de US$ 265 milhões (R$ 1,27 bilhão) foram canalizados para programas que procuram tornar o uso de drogas mais seguro, fornecendo agulhas limpas, tiras de teste, apoio de pares adequado para a cultura de cada usuário e abrigo para pessoas que estão iniciando sua recuperação. Mas o tratamento de internação para a dependência ainda precisa ser muito expandido.

Mesmo assim, críticos da Medida 110 dizem que poucos usuários de drogas que receberam multas de US$ 100 buscaram o tratamento de reabilitação.

Salazar rejeita essa afirmação. "Dizem por aí que a Medida 110 não funciona porque as pessoas não querem tratamento", falou ela. "Simplesmente não é verdade."

Unindo vizinhos de visões divergentes

Uma van surrada com uma caixa de armazenagem presa ao teto está estacionada há meses do outro lado da rua, em frente à Igreja Episcopal São Pedro e São Paulo, na zona sudeste de Portland, e o movimento em torno dela não para em todos os horários do dia. A reverenda Sara Fischer acha que os donos estão traficando drogas. Ela reconhece alguns fregueses, que também comparecem ao estacionamento de sua igreja —abrigo de um programa municipal de troca de agulhas.

Muitos fiéis da igreja já manifestaram frustração com o uso público e onipresente de drogas no bairro, uma área em processo de gentrificação chamada Montavilla, com população diversa. Mas as sugestões de como reagir provocam divergências.

Alguns querem que os usuários de drogas sejam expulsos. Eles ficam indignados porque seus filhos são obrigados a contornar barracas a caminho da escola e testemunhar overdoses, acessos frenéticos e defecação em público. Mas outros, disse a reverenda, se preocupam com como conseguir atendimento melhor e mais constante para as pessoas nas barracas.

Aos domingos, a igreja promove um almoço para todos na comunidade, quer vivam em barracas ou em casas confortáveis. Ali as pessoas que vivem bem não servem comida às que não têm nada. Em vez disso, todos comem juntos. Compartilham suas histórias de vida, tocam música e fazem arte.

"Depois que a gente conhece os nomes e as histórias das pessoas, elas deixam de parecer tão assustadoras", disse Fischer. "Deixam de ser ‘aquelas pessoas’ lá fora."

Tradução de Clara Allain 

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.