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Thiago Amparo

Lula é respeitado na ONU não por merecer aplauso, mas por ser digno de ser ouvido

Com equilibrismo, presidente foi ao mesmo tempo assertivo e cauteloso

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Thiago Amparo

Professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP e colunista da Folha

Nova York

"Nós, países em desenvolvimento", disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em trecho crucial de seu discurso nas Nações Unidas nesta terça-feira (19) em Nova York. "Já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível", complementou.

O que era para ser uma figura linguística na primeira pessoa do plural revelou-se como um ato falho por demais esclarecedor da posição de liderança que o país tem tentado construir no cenário internacional em 2023, com mais acertos que tropeços.

Se o discurso de Lula repetiu o foco na desigualdade já presente na última fala há 14 anos na mesma tribuna da ONU, nos últimos meses a estatura internacional do país elevou-se rápida e consideravelmente, após Jair Bolsonaro (PL), com certo orgulho tacanho, relegá-lo a pária. Lula ter mencionado, por exemplo, direitos LGBTQIA+ demarca a saída do obscurantismo reacionário bolsonarista que, há três anos, falava no mesmo palco sobre a inexistente "ideologia de gênero". O Brasil que subiu a tribuna é respeitado não por merecer aplauso, mas por ser digno de ser ouvido com atenção.

O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva discursa na 78ª Assembleia-Geral das Nações Unidas na sede da ONU em Nova York, em 19 de setembro de 2023
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva discursa na 78ª Assembleia-Geral das Nações Unidas na sede da ONU em Nova York, em 19 de setembro de 2023 - Timothy A. Clary - 19.set.23/AFP

Lula falou com a altivez de um país que, só neste semestre, assume a presidência do Mercosul, do Conselho de Segurança e do G20, além de liderar ativamente o Brics, agora em expansão, e de ter se oferecido a hospedar a Conferência do Clima, COP30, em 2025 (este último feito não mencionado por Lula no discurso). Lula fala para uma ONU cuja legitimidade, apesar de seu papel fundamental, tem sido fortemente questionada. A Assembleia-Geral, outrora o Oscar dos chefes de Estado, está neste ano esvaziada de representações de alto nível, com exceção de Volodimir Zelenski, Lula e Joe Biden.

O Brasil voltou, portanto, mas não o faz sozinho: voltou como o porta-voz do Sul Global, esse conceito geopolítico plural, e não geográfico, que —embora já inadequado para dar conta das complexidades do mundo de hoje— dá robustez ao discurso de Lula na primeira pessoa do plural.

Se houvesse um bingo da cartilha diplomática dos países em desenvolvimento, Lula teria gabaritado a cartela. Culpou nominalmente as instituições liberais de Bretton Woods, FMI e o Banco Mundial, por reproduzir desigualdades. Defendeu novos agrupamentos como o Brics diante do "imobilismo" da ONU. Ressaltou a "paralisia" da OMC. Como hábil orador, Lula navega entre críticas ao sistema internacional e crença no seu potencial de resolver problemas globais.

Por vezes, foi assertivo e inequívoco: trouxe na bagagem de Havana, onde esteve antes, a condenação explícita do embargo ilegal dos EUA a Cuba; e defendeu Julian Assange, diretamente, e liberdade de imprensa, mais vagamente sem mencionar violações a jornalistas em ditaduras. Outras vezes, com maestria equilibrista, Lula logrou ser, numa tacada só, assertivo e cauteloso, porque as tacadas que deu foram com luva de pelica. É, talvez, o ônus de se colocar como líder e, portanto, ser escutado atentamente.

São diversos os exemplos de equilibrismo ou, para os críticos, malabarismo. Citou a Guerra da Ucrânia –que "escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU" – sem mencionar a Rússia para não cair em erros primários anteriores pelos quais suas declarações geraram mal-estar.

O mesmo equilibrismo se viu no tema climático. Como esperado, a crise climática ocupou parte central do discurso, a partir da lente das disparidades globais. "São as populações vulneráveis do Sul Global", afirmou. Num dos pontos mais fortes e aplaudidos do discurso, o presidente recém-chegado da Cúpula da Amazônia reafirmou a soberania coletiva amazônica para defender seus interesses. "O mundo inteiro sempre falou da Amazônia. Agora, a Amazônia está falando por si."

Faltaram alguns pontos na área climática, no entanto. Lula, sob aplausos, ressaltou o feito liderado pela ministra Marina Silva de redução do desmatamento amazônico em 48%, mas perdeu a oportunidade de apresentar uma meta de redução de emissão de gases de efeito estufa mais ambiciosa. Tampouco condenou combustíveis fósseis nem mencionou povos indígenas.

O Lula que subiu à tribuna da ONU visivelmente cansado, após tantas viagens internacionais em nove meses de mandato, é mais uma expressão da potência diplomática do país do que de sua fraqueza. Ao bater diversas vezes na tecla da fome —cinco, para ser preciso—, ele marcou o ritmo de sua música diplomática: a constância não é sinal de um Lula repetitivo, mas sim de um mundo e de uma ONU ainda aquém das promessas que colocaram para si mesmos.

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