Os segredos que o Hamas sabia sobre as forças armadas de Israel

Terroristas tinham informações privilegiadas, e documentos indicam ação planejada por pelo menos um ano

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Patrick Kingsley Ronen Bergman
The New York Times

Terroristas armados do Hamas invadiram Israel numa operação altamente organizada e meticulosamente planejada, o que sugere compreensão profunda das fraquezas de Israel. Os dez homens armados de Gaza sabiam exatamente como encontrar o centro de inteligência israelense e como entrar.

Depois de cruzar para Israel, eles seguiram para leste em cinco motocicletas, dois homens armados em cada veículo, atirando em carros civis que passavam enquanto avançavam.

Depois de 16 quilômetros, eles saíram da estrada e entraram em uma área de mata, descendo do lado de fora de um portão desativado de uma base militar. Eles explodiram a barreira com uma pequena carga explosiva, entraram na base e posaram para tirar uma selfie em grupo. Em seguida, eles mataram a tiros um soldado israelense desarmado vestido com uma camiseta.

Soldados mexem em corpo enrolado em saco plástico no chão.
Soldados israelenses verificam os corpos de pessoas mortas em Kfar Azza, um vilarejo do outro lado da fronteira com Gaza que foi atacado por homens armados palestinos, em Israel - Sergey Ponomarev - 11.out.2023/The New York Times

Por um momento, os invasores pareceram incertos sobre para onde ir em seguida. Então, um deles tirou algo do bolso: um mapa codificado por cores do complexo.

Reorientados, eles encontraram uma porta destrancada para um prédio fortificado. Uma vez dentro, eles entraram em uma sala cheia de computadores —o centro de inteligência militar. Debaixo de uma cama na sala, eles encontraram dois soldados se abrigando.

Os homens armados mataram ambos a tiros.

Essa sequência foi capturada por uma câmera montada na cabeça de um dos homens armados que foi morto posteriormente. O New York Times revisou as imagens e, em seguida, verificou os eventos entrevistando autoridades israelenses e checando vídeos militares israelenses do ataque.

Eles fornecem detalhes de como o Hamas, a facção que controla a Faixa de Gaza, conseguiu surpreender e superar o exército mais poderoso do Oriente Médio no último sábado (7) —atravessando a fronteira, dominando mais de 77 km², fazendo mais de 150 reféns e matando mais de 1.300 pessoas no dia mais mortal para Israel em seus 75 anos de história.

Com um planejamento meticuloso e um conhecimento extraordinário dos segredos e fraquezas de Israel, o Hamas e seus aliados atacaram a fronteira de Israel com Gaza logo após o amanhecer.

Usando drones, o Hamas destruiu torres de vigilância e comunicações-chave ao longo da fronteira com Gaza, impondo grandes pontos cegos ao exército israelense. Com explosivos e tratores, o Hamas abriu brechas nas barricadas da fronteira, permitindo que 200 invasores passassem na primeira onda e outros 1.800 mais tarde naquele dia, segundo autoridades. Em motocicletas e caminhonetes, os agressores avançaram em Israel, dominando pelo menos oito bases m

ilitares e realizando ataques terroristas contra civis em mais de 15 vilas e cidades.

Palestinos invadem o lado israelense da cerca da fronteira Israel-Gaza depois que homens armados se infiltraram em áreas do sul de Israel - Mohammed Fayq Abu Mostafa - 7.out.2023/Reuteus

Documentos de planejamento do Hamas, vídeos do ataque e entrevistas com autoridades de segurança mostram que o grupo tinha uma compreensão surpreendentemente sofisticada de como o exército israelense operava, onde ele posicionava unidades específicas e até mesmo o tempo que levaria para que reforços chegassem.

O exército israelense diz que, uma vez que a guerra acabar, investigará como o Hamas conseguiu violar suas defesas tão facilmente.

Mas se as forças armadas foram descuidadas com seus segredos ou infiltradas por espiões, as revelações já deixaram autoridades e analistas nervosos e questionando como o exército israelense — conhecido por sua inteligência— poderia ter inadvertidamente revelado tantas informações sobre suas próprias operações.

Um homem tira uma foto de pessoas mortas espalhadas por uma estrada após uma infiltração em massa de homens armados do Hamas vindos da Faixa de Gaza, na área de Sderot, sul de Israel - Ammar Awad - 7.out.2023/Reuters

O resultado foi uma série impressionante de atrocidades e massacres, no que o presidente israelense, Isaac Herzog, descreveu como o pior massacre de judeus em um único dia desde o Holocausto.

Isso quebrou a aura de invencibilidade de Israel e provocou um contra-ataque israelense em Gaza que matou mais de 2.600 palestinos em uma semana, cuja ferocidade nunca foi vista em Gaza.

Também derrubou as suposições de que o Hamas, há muito designado como grupo terrorista por Israel e muitas nações ocidentais, havia gradualmente se interessado mais em governar Gaza do que em lançar grandes ataques contra Israel.

O Hamas fez os israelenses pensarem que estava "ocupado com governar Gaza", disse Ali Barakeh, um líder do Hamas, em uma entrevista na televisão na segunda (9). "Enquanto isso, por baixo da mesa, o Hamas estava se preparando para esse grande ataque", acrescentou.

'Hamas no Kibbutz!'

Os terroristas estavam dentro da casa de Addi Cherry, do outro lado de uma porta destrancada.

Cherry, seu marido e seus três filhos estavam escondidos dentro do quarto do filho mais velho, ouvindo os homens armados andarem pela sala de estar.

"Por favor, nos ajude", Cherry enviou uma mensagem de texto para um amigo, enquanto um dos agressores se aproximava cada vez mais da porta do quarto.

Então ele segurou a maçaneta da porta.

O dia da família Cherry havia começado com uma explosão de foguetes de Gaza, pouco depois das 6h.

Cherry, uma economista, e seu marido, Oren, um engenheiro, correram com seus filhos para o quarto do filho mais velho, que também servia como abrigo antiaéreo.

Inicialmente, os eventos da manhã pareciam familiares. A família Cherry mora no kibutz Nahal Oz, uma vila rural com cerca de 500 habitantes, a algumas centenas de metros a leste da fronteira com Gaza. Disparos de foguetes pela manhã e a subsequente corrida para o abrigo seguro são uma característica frequente da vida na região.

Mas esta manhã logo parecia diferente. Os foguetes continuavam chegando, muitos deles indo para o território israelense. Então, dos campos ao redor da vila, veio o som de tiros.

O marido de Cherry saiu do quarto e espiou pelas persianas das janelas da sala de estar. "Oh Deus", ele gritou. "Hamas no kibbutz! Hamas no kibbutz!" Eram 7h20.

Centenas de invasores do Hamas, carregando armas, lançadores de foguetes portáteis nos ombros e usando a faixa verde do grupo, estavam avançando pelos campos da vila.

Isso fazia parte de um ataque coordenado que, documentos e vídeos mostram, designou esquadrões de agressores para alvos precisos. Enquanto alguns varriam bases militares, outros avançavam em áreas residenciais, sequestrando e matando impiedosamente civis.

Eles chegariam à rua dos Cherrys em questão de minutos. A família teve que agir rapidamente. Seu abrigo antiaéreo —um quarto de adolescente— não tinha fechadura. Os pais pegaram uma cadeira e a encaixaram na maçaneta da porta, tornando mais difícil de abrir. Eles arrastaram um pequeno armário e o pressionaram contra a cadeira.

Então eles esperaram. Havia uma base do exército ao lado da vila. Suas tropas estariam aqui em questão de minutos, pensou Cherry. O que ela não sabia era que muitos deles já estavam mortos.

'Levar soldados e civis'

Ao longo da fronteira, os atiradores do Hamas já haviam tomado a maioria, se não todas, as bases fronteiriças israelenses.

Imagens das câmeras acopladas às cabeças dos terroristas, incluindo o vídeo do ataque ao centro de inteligência, mostraram os atiradores da altamente treinada brigada Nukhba do Hamas rompendo as barricadas de várias bases na primeira luz da manhã.

Depois de invadir, eles foram implacáveis, matando alguns soldados em suas camas e roupas íntimas. Em várias bases, eles sabiam exatamente onde estavam os servidores de comunicação e os destruíram, de acordo com um oficial sênior do exército israelense.

Um prisioneiro palestino vendado fala com um membro das forças de segurança israelenses na fronteira com Gaza, perto da cidade de Ashkelon, no sul de Israel - Jack Guez - 8.out.2023/AFP

Com grande parte de seus sistemas de comunicação e vigilância inoperantes, os israelenses muitas vezes não conseguiam ver os comandos chegando. Eles encontraram mais dificuldade em pedir ajuda e montar uma resposta. Em muitos casos, eles não conseguiam se proteger, muito menos proteger as vilas civis vizinhas.

Um documento de planejamento do Hamas —encontrado por socorristas israelenses de emergência em uma vila— mostrou que os agressores estavam organizados em unidades bem definidas, com metas claras e planos de batalha.

Um pelotão tinha navegadores designados, sabotadores e motoristas —além de unidades de morteiro na retaguarda para fornecer cobertura aos atacantes, mostra o documento.

O grupo tinha um alvo específico —um kibbutz— e os atacantes receberam a tarefa de invadir a vila por ângulos específicos. Eles tinham estimativas de quantas tropas israelenses estavam estacionadas em postos próximos, quantos veículos tinham à disposição e quanto tempo levaria para que essas forças de socorro israelenses os alcançassem.

O documento é datado de outubro de 2022, sugerindo que o ataque tenha sido planejado por pelo menos um ano.

Em outros lugares, mais homens foram posicionados em cruzamentos de estradas-chave para emboscar reforços israelenses, de acordo com quatro oficiais e autoridades sêniores.

Algumas unidades tinham instruções específicas para capturar israelenses para uso como moeda de troca em futuras negociações de prisioneiros com Israel.

"Levar soldados e civis como prisioneiros e reféns para negociar", dizia o documento.

'Vamos morrer'

Os terroristas arrombaram a casa de Cherry pouco antes das 10h, de acordo com mensagens dela a amigos pouco antes.

Eles já haviam matado os guardas do kibutz, bem como um voluntário de segurança civil que havia se apressado para confrontá-los nos primeiros momentos do ataque, de acordo com a liderança da vila.

Agora, os terroristas estavam indo de casa em casa, tentando encontrar pessoas para matar e sequestrar.

"Por favor, envie ajuda", digitou Cherry em seu telefone. Na casa dela, eles forçaram a porta. Então entraram correndo, gritando e saqueando a casa, disse Cherry.

A família aguardou aterrorizada em silêncio, esperando que os invasores ignorassem a porta do quarto e assumissem que todos estavam ausentes.

Cherry e o marido colocaram todo o seu peso contra o armário, para apoiar a cadeira sob a maçaneta da porta. Guy, de 15 anos, seu filho mais velho, ficou ao lado da porta, segurando um halter de 8 kg. Se alguém conseguisse entrar, o plano era deixá-lo cair na cabeça do agressor.

Então a maçaneta se mexeu. Os pais começaram a empurrar o armário. A maçaneta continuou a tremer.

Então parou. O agressor se afastou.

'Corpos estavam queimando'

O brigadeiro-general Dan Goldfus disse que dirigiu para o sul sem saber exatamente para onde deveria ir.

Goldfus, 46, comandante de paraquedistas, estava de folga em casa, correndo em seu bairro ao norte de Tel Aviv. Então ele viu um vídeo do sul, mostrando terroristas passeando por uma cidade completamente desimpedidos.

Sem esperar por ordens, o general disse que correu para casa, trocou de roupa e seguiu para o sul.

Ele pegou armas e dois soldados de sua base no centro de Israel e ligou para amigos e colegas para descobrir o que estava acontecendo.

Apenas alguns atenderam. Dos demais, "não havia ninguém realmente entendendo o quadro completo", disse o general Goldfus, em entrevista.

A velocidade, precisão e escala do ataque do Hamas haviam lançado o exército israelense no caos, e por muitas horas depois, os civis foram deixados à própria sorte.

Usando as poucas informações que podia obter, o general Goldfus disse que ele e os soldados seguiram para uma vila ao norte de Nahal Oz e depois gradualmente avançaram para o sul.

Era por volta das 10h. Ao seu redor, havia carnificina e atrocidade. Israelenses mortos ladeavam as estradas, ao lado das carcaças de carros incendiados e capotados. No local de uma rave ao ar livre durante a noite toda, os atiradores mataram cerca de 260 participantes. "Corpos estavam queimando", lembrou o general Goldfus de ter visto no local.

O ataque do Hamas havia desencadeado uma violência generalizada. Alguns moradores de Gaza haviam atravessado a fronteira indefesa depois que ela foi violada, às vezes transmitindo o que estavam fazendo em seus telefones, saqueando casas, levando computadores, roupas, louças, televisões e telefones, de acordo com sobreviventes.

Em algumas vilas israelenses, os moradores foram queimados vivos em suas casas, enquanto os terroristas perseguiam civis em cada esquina, procurando pessoas para capturar e matar. Avós, crianças pequenas e um bebê de nove meses foram sequestrados e levados de volta a Gaza, alguns deles espremidos entre seus sequestradores em motocicletas.

E durante grande parte do caos, o exército israelense estava quase em lugar nenhum.

Perto do kibutz Re'im, o general Goldfus disse que encontrou outro comandante sênior por acaso. Assim como ele, o oficial havia se apressado para o local por instinto, sem nenhuma instrução, e havia reunido um pequeno grupo de soldados. Ali mesmo, os dois homens criaram sua própria estratégia improvisada.

"Aqui não há ordens", disse o general Goldfus. "Eu disse: 'Você pega deste lugar e mais ao sul —e eu pego deste lugar e mais ao norte.'"

Foi assim que parte do contra-ataque israelense aconteceu: soldados ou voluntários civis —incluindo generais aposentados em seus 60 anos— correndo para a região e fazendo o que podiam.

Israel Ziv, um ex-general, chegou a uma batalha próxima em seu Audi.

Yair Golan, ex-vice-chefe de gabinete e ex-deputado de esquerda, disse que pegou uma arma e começou a resgatar sobreviventes de um massacre em uma rave, que estavam se escondendo em arbustos próximos.

"Somos criados para correr o mais rápido possível em direção ao fogo", disse o general Goldfus. "Para que possamos ser os primeiros a chegar lá."

Até a tarde de domingo, várias vilas e bases ainda tinham alguma presença do Hamas. Toda a área não seria totalmente segura por dias.

Cherry apareceu por volta das 17h de sábado no kibutz Nahal Oz e encontrou sua casa de cabeça para baixo, o micro-ondas arrancado da parede, gavetas arrancadas dos armários e uma poça de sangue seco no chão.

Ela ouviu um tiroteio em sua casa e ao redor dela mais cedo no dia. Ela acreditava que um terrorista havia morrido na casa —e que seu cadáver ensanguentado havia sido levado por companheiros.

Alguns sobreviventes se recusaram a abrir, mesmo depois que o exército chegou.

Quando os soldados chegaram à casa de Oshrit Sabag, outra moradora de Nahal Oz, ela temeu que fossem terroristas disfarçados.

Mesmo depois que os soldados começaram a conversar entre si em hebraico, para provar quem eram, Sabag, 48, não estava convencida.

Foi apenas a oração judaica deles que a fez relaxar. "Está tudo bem, está tudo bem", Sabag lembrou eles dizendo. "Somos judeus".

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