Descrição de chapéu violência

Violência volta a escalar no Haiti, e missão aprovada na ONU fica mais distante

Morte de líder de gangue abre disputa por território que ameaça civis enquanto Quênia, que lideraria operação, vive impasse

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São Paulo

A esperança que ronda a missão internacional aprovada na ONU em outubro para apoiar a polícia nacional do Haiti a combater a galopante crise de segurança urbana que assola o país do Caribe parece se retrair a cada dia. O motivo são os últimos acontecimentos no Quênia, a nação africana que se dispôs a liderar a operação.

No mais recente capítulo de uma batalha judicial que ganhou fôlego com o sinal verde dado pelo Conselho de Segurança para a missão de apoio, o Supremo Tribunal do Quênia prorrogou no final da quinta-feira (16) uma ordem anterior que impede de maneira temporária o envio de mil policiais quenianos ao Haiti.

Homem com rosto coberto com camiseta perto de pneus incendiados durante protesto contra insegurança em Carrefour-Feuilles, distrito da capital haitiana, Porto Príncipe
Homem com rosto coberto com camiseta perto de pneus incendiados durante protesto contra insegurança em Carrefour-Feuilles, distrito da capital haitiana, Porto Príncipe - Richard Pierrin - 14.ago.23/AFP

A decisão ocorreu apenas horas após o Parlamento do país aprovar em Nairóbi o pedido do governo do presidente William Ruto para enviar a força de segurança, em um debate acalorado.

O imbróglio está na espécie de efeito dominó que a situação no Quênia pode proporcionar. Até aqui, apenas países como os também africanos Burundi e Chade, bem como o centro-americano Belize e o caribenho Jamaica, ofertaram enviar homens para se somar à missão.

A expectativa dos envolvidos era a de que, uma vez que Nairóbi desse o pontapé inicial no envio de homens, mais países se prontificassem.

Ocorre que, agora, o plano que era projetado para ter início em janeiro fica indefinido. O Supremo Tribunal do Quênia disse que só emitirá uma nova decisão em 26 de janeiro, atrasando qualquer possibilidade de envio da força multinacional para apoiar o Haiti.

Em Nova York, que sedia o Conselho de Segurança, os debates sobre o tema estão travados, aguardando uma resolução. Enquanto isso, correm em paralelo negociações bilaterais do Brasil, que planeja ofertar treinamento policial aos haitianos, mas sem enviar efetivos.

O questionamento judicial no país da costa leste africana foi movido pelo político de oposição Ekuru Aukot, que diz que a Constituição local apenas permitiria envio de militares ao exterior, não de policiais civis, de modo que a ação governista seria inconstitucional.

Ele acusou os parlamentares que deram apoio à missão de "desobedecerem uma ordem judicial". "Nosso Parlamento vendeu sua alma para os Estados Unidos limparem a confusão que causaram no Haiti", escreveu no X.

O governo de Joe Biden é o principal patrocinador dos planos para o envio da missão de apoio à Polícia Nacional Haitiana, ainda que não vá enviar homens —apenas dinheiro. É dos EUA que sai a maior parte das armas que penetram nas pouco ou nada protegidas fronteiras marítimas e terrestres haitianas. Também são os EUA o principal destino de migrantes haitianos que tentam fugir da crise humanitária.

Morte de líder da G9 acirra disputa armada por território

No Haiti, o timing para essa indefinição não poderia ser pior. A onda de violência que assola a capital, Porto Príncipe, com boa parte de seu território controlado por gangues e sob o governo disfuncional simbolizado pelo premiê Ariel Henry, voltou a escalar nos últimos dias.

O catalisador foi a morte de Iskar Andrice, um dos líderes da coalizão de gangues G9 que controlava a região conhecida como Belekou na comuna de Cité Soleil, uma das mais pobres da capital. O episódio abriu uma nova frente de disputa territorial com a coalizão oposta ao G9, a G-Pèp, liderada por Gabriel Jean-Pierre, o Ti Gabriel.

Professor de matemática e física, Iskar está envolvido em crimes de assassinato, extorsão, estupro, roubo de mercadorias e caminhões, de acordo com um recente e detalhado relatório de uma missão in loco da ONU. Para se aproximar da comunidade onde atuava e maquiar os ingressos de dinheiro, chegou a criar uma fundação social.

Ele liderava a coalizão G9 ao lado do ex-policial Jimmy Cherizier, conhecido como Barbecue. E as circunstâncias de sua morte não foram detalhadas, nem pelas gangues nem por autoridades locais.

A G9, também de acordo com as informações das Nações Unidas, conta com cerca de mil homens, em sua maioria ex-policiais, ex-seguranças e crianças em situação de rua —o recrutamento de menores é uma prática corriqueira das gangues locais.

Em julho passado, uma missão católica intermediou um "compromisso de paz" costurado e assinado entre três líderes da G9, sendo dois deles Iskar e Barbecue, e um da G-Pèp, o Ti Gabriel. No documento, eles se comprometeram a "trabalhar duro para colocar fim à violência e trazer paz". O tempo mostrou que o compromisso durou pouco.

O caos em um hospital em Cité Soleil na quarta-feira (15) simbolizou a escalada de violência. Mais de cem pacientes, metade deles crianças, tiveram de ser retirados do Fontaine Hospital Center, uma clínica comunitária, após uma disputa das gangues incendiar diversas casas nos arredores do edifício, colocando-o em risco.

Com o hospital agora fechado, o único local aberto para atender pacientes é um hospital de emergência operado pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), que neste período também se viu forçada a fechar um ambulatório nos arredores devido à violência.

Em nota nesta sexta-feira, o MSF disse que tem atendido a dezenas de pessoas feridas devido às ações das gangues e chamou a atenção, em especial, para as mulheres grávidas, que antes costumava encaminhar para o Fontaine Hospital para darem à luz, possibilidade encerrada.

Em apenas quatro dias, as disputas que seguiram à morte de Iskar forçaram ao menos mil haitianos a deixarem suas casas, segundo a organização de pesquisa Crisis Group, que também atua no país.

A ONU afirma que em três meses, de 1º de julho a 30 de setembro, foram registrados 1.239 homicídios no Haiti, mais que o dobro dos 577 homicídios no mesmo período de 2022. Nesse intervalo de tempo, mais de 700 pessoas foram sequestradas, um aumento de 244% em relação ao ano anterior.

Em uma recente visita ao país, o especialista independente da ONU para direitos humanos, William O'Neill, disse que a violência local tem "sacrificado toda uma geração de haitianos".

Entre outras coisas, ele chamou a atenção para o sistema carcerário e de Justiça. De acordo com O'Neill, prisões juvenis estão com lotação acima de 350% de sua capacidade, e 99% dos menores detidos não foram condenados, mas aguardam ali em prisão preventiva estendida. "Estão presos por terem roubado uma galinha, um par de sapatos ou um celular, sem nem sequer terem a chance de ver um juiz."

Investigação da morte de presidente avança a passos lentos

A espiral de violência no Haiti foi agravada após o presidente Jovenel Moïse, conhecido como o "homem banana" por sua riqueza e atuação no cultivo da fruta, ser assassinato a tiros em sua casa em 2021.

Com a disfuncionalidade das instituições haitianas, entre elas o setor de Justiça, o governo americano absorveu parte dos processos de investigação, que correm no sul da Flórida.

Até aqui, 11 pessoas foram indiciadas nos EUA, e três se declararam culpadas, entre elas um mercenário colombiano. A principal linha de investigação aponta para a possibilidade de uma empresa de segurança que atua na Flórida ter patrocinado o assassinato do presidente com o objetivo de lucrar com potenciais contratos de segurança a serem firmados com o governo que o substituiria.

O nome do mandante intelectual do crime, porém, segue em aberto. Em território haitiano, a principal aposta da enfraquecida polícia é de que se trate de Joseph Félix Badio, um ex-oficial militar que somente foi preso em outubro passado. Apesar de detido, ele ainda não foi formalmente acusado de assassinato ou de quaisquer outros crimes.

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